Ridley Scott, Cruzada e o épico em seu auge

O cineasta Ridley Scott se especializou em dois dos mais fascinantes gêneros do cinema: o épico e a ficção científica. Tendo despontado com o futurismo de Alien (1979) e Blade Runner (1882), nos anos 1990 fez a virada que marcaria a sua carreira, quando, com “1492 – A conquista do paraíso” (1992), retratou as viagens de Cristóvão Colombo e abriu caminho para sua trajetória com as reconstituições de época.

A partir dali, o mais tardio de seus estilos seria o mais marcante da sua assinatura. Com “Gladiador” (2000), venceria o Oscar Melhor Filme, fazendo breve incursão no gênero guerra em Falcão Negro em Perigo (2001). Em seguida, retornaria ao épico com “Cruzada” (2005), tema desta análise, e depois “Robin Hood” (2010) e “Exodus” (2014), este último uma reconstituição do livro Êxodo, da Bília, quase uma releitura do classicíssimo “Os dez mandamentos” (1956), de Cecil B. DeMille.

Se, nos anos 2010, a carreira de Scott esfriou para os filmes de época, com a decepção final em “Napoleão” (2023), o diretor ainda emplacou boas expansões para o universo de “Alien”: “Prometheus” (2012) e “Alien: covenant” (2017).

O medievo e a crise de fé (sem spoilers)

Orlando Bloom e Liam Neeson impecáveis como os chefes do baronato de Ibelin

Baudolino é uma das personagens mais carismáticas do filme

Não havia tabu maior, durante a Idade Média, que a perda da fé. Se hoje ateus pululam por aí, naquela época este seria um segredo pessoal e, muitas vezes, motivo de dor, porque jamais poderia ser compartilhado, sob pena de perseguição e morte por apostasia. Pois “Cruzada” conta a história de Balian (Orlando Bloom), um ferreiro que perdeu a fé após o suicídio da esposa, e que, providencialmente, recebe a visita do verdadeiro pai, o Barão de Ibelin (Liam Neeson). Este o chama a se tornar seu herdeiro no Reino de Jerusalém, participando das cruzadas.

A princípio ele não aceita, o pai vai embora e indica que o filho pode encontrá-lo no caminho para a cidade sagrada, deixando uma curiosa dica sobre como alcançá-lo: “Jerusalém é fácil de encontrar: vá até onde os homens falam italiano, depois continue até onde eles falarem outra coisa”. Essa é a primeira das duas máximas famosas do filme de Scott.

Abandonado e perseguido na vila, sob discriminação por ser viúvo de uma suicida, ele mata um padre e, já com dois pecados mortais, o ateísmo e o assassinato, deixa a vila a caminho do pai. Encontra-o na estrada e eles são emboscados por ladrões, situação em que o pai é ferido de morte e, após ainda viajarem para Messina, na Sicília, morre logo após transferir o baronato para o filho. Balian termina a viagem para Jerusalém já como Barão de Ibelin. Em Jerusalém, vai ter de lutar como guardião da fé católica contra os muçulmanos, mesmo sabendo-se um homem se fé.

Duas fés e um só reino (com spoilers)

Jeremy Irons vai bem como Tiberias, apesar do papel discreto

Antagonista, saladino retém carisma por sua profundidade

Em Jerusalém, ele encontra um reino degradado e corrupto, em que forças políticas disputam o poder sobre a Terra Santa, enquanto o verdadeiro rei, Baldolino, é um homem leproso, que tem poucos dias de vida. Sua irmã, Sybilla, está por se casar com um nobre importante, Guy de Lusignan, que pretende usufruir luxuosamente de uma terra que, na verdade, é pobre. Balian recebe seu baronato em meio a esse problema, e o faz prosperar, ao mesmo tempo em que ganha respeito do rei e envolve-se amorosamente com Sybilla.

O rei doente e seu chefe militar, Tiberias (Jeremy Irons), mantém uma paz armada com os árabes. Mas, o tempo todo, ameaça o Reino de Jerusalém o emir dos povos árabes, Saladino, que mantêm cercos militares à cidade e fica distante em respeito a Baldolino. Quando o jovem rei morre, e Lusignan é coroado, tem fim a trégua entre cristãos e muçulmanos. A empáfia das lideranças cristãs é confrontada, no filme, com a humildade e o ascetismo dos árabes, em especial de Saladino e seu comandante em chefe.

Este último admira Balian, devido a um duelo que este vencera contra seu comandado, antes mesmo de chegar a Jerusalém, em que o subordinado lutou como se fosse seu comandante. Pensando preservar a vida do criado, Balian poupara o próprio homem-forte de Saladino, que lá no início cunhou a segunda das máximas do filme: “Suas qualidades serão conhecidas entre seus amigos, antes mesmo que você possa encontrá-los, meu amigo”. O que, em meados do roteiro, parece um elogio despretensioso, no clímax é revelado como a verdade sobre a identidade do soldado com quem Balian foi clemente.

O ex-ferreiro, agora barão, tenta intermediar uma solução pacífica para o conflito entre cristãos e muçulmanos pela Terra Santa, ao lado de Sybilla. Mas, sem Baudolino, a situação está incontrolável, e Lusignon manda matar a irmã de Saladino, o que termina por impossibilitar a paz e começar a guerra entre os dois povos e credos. Uma imensa batalha ocorre, e Balian vê tudo que construiu ruir, apenas buscando defender a si e aos compatriotas civis, ordenando seus homens mais simples como cavaleiros, para comandarem um exército em frangalhos por um ataque mal-executado contra as tropas de Saladino.

A guerra é perdida, os líderes cristãos morrem, mas Balian consegue preservar a si, a Sybilla e parte da população de Jerusalém, que é tomada pelo Califado Fatímida e vê suas igrejas serem encimadas pelos minaretes islâmicos, no lugar das cruzes. Esta imagem encerra o cenário de Jerusalém, para que o filme se encerre de volta à vila onde o ferreiro recebera a visita do pai, e onde agora ele vive com Sybilla, refugiada da guerra e dos tormentos que lhe causaram a vida de princesa do Reino de Jerusalém.

O melhor de Ridley Scott

De longa carreira, Ridley Scott teve aí seu auge entre os épicos

Para muitos, “Cruzada” é o filme mais completo do diretor americano. Se no filme sobre Colombo a narrativa é de um romantismo pouco profundo, e em “Gladiador” o foco são as cenas de ação e as atuações de Russell Crowe como o general Máximus e Joaquin Phoenix como o Imperador Cômodo, em Cruzada o misto de ação, reconstituição de época, conspiração e discussão filosófica sobre existência e fé faz do filme uma obra completa. Qualquer um pode encontrar sua forma favorita de assistir a “Cruzada”, desde um adolescente que quer cenas de batalhas épocas, até parte de um público cult que aprecia o processo de questionamento da própria fé por Balian.

Muitas vezes um diretor vence o Oscar, seja de diretor ou filme, por um filme que não é, necessariamente, o seu melhor. Cruzada teve desempenho discreto na temporada de premiações, em grande parte porque o timing foi errado. Vindo logo depois dos atentatos às Torres Gêmeas e durante as Guerras do Afeganistão e do Iraque, ficou marcado com a pecha injusta de peça de propaganda norte-americana. Também não ajudou o fato de que, poucos anos antes, Scott tenha sido coroado por "Gladiador". Contudo, esta é uma obra prima do gênero épico. Sem mais.



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