
Arnold, Luma e a vida de uma vaca
Muito se discute sobre que grau de envolvimento e empatia devemos ter com os animais. Dos mais insensíveis e responsáveis por maus-tratos, até os meio hippies que vivem para defender os bichos como se fosse humanos, diversos graus de meios termos se apresentam, uns criando teorias da conspiração sobre o que motiva a defesa dos animais, outros tentando impedir que se coma ou se use quaisquer utensílios de origem animal.
Algumas pessoas se importam com o sofrimento, outros simplesmente creem que o humano não tem direito de interferir na existência de um ser independente. No seu limite, tais delírios chegam na criação de animais como fator principal da degradação do planeta. Do outro lado, alguns transformam a carne bovina em símbolo de status social e pessoas supostamente transformam leite de vaca em símbolo de superioridade racial.
No meio disso tudo, um animal simboliza toda a discussão: a vaca. Quando se fala em pecuária, pensa-se nela. Quando se fala em latifúndio, é ela que vem à cabeça. Alguns povos, inclusive, a sacralizaram – ou assim se diz. Por isso, a cineasta britânica Andrea Arnold decidiu filmar o dia a dia de uma vaca, produzindo e dirigindo o documentário “Vaca” (2021), que ganhou exibição em Cannes no seu ano de lançamento.
Roteiro entre imagens e mugidos
Vaquinha Luma tem direito até a planos-sequência
Nada mais se apresenta no filme pra lá de minimalista conduzido por Arnold. Começamos conhecendo Luma – assim chamada pelos funcionários da fazenda – que dá à luz um bezerro, do qual é separada de imediato, pois é uma vaca leiteira e deve servir seu leite aos humanos. O que parece um documentário eco-woke termina, porém, por seguir uma narrativa interessante, sem vitimizar Luma, mas mostrando seus caminhos como uma vaca de idade avançada, ainda servindo com reprodução e leite.
A filmagem durou dois anos, dia após dia atrás de Luma e seus afazeres, conduzidos pelos trabalhadores rurais. No fim das contas, a vaca é a suposta protagonista da história, mas todos os seus atos são coordenados por humanos, obviamente, o que faz com que o homem dê o ritmo da história e a vaca apenas derive por ela. Mugindo. E, paralelamente, seu bezerro balindo em cenas sobre o crescimento de um bebê bovino macho.
Somos confrontados com cenas fortes, como o filhote sendo etiquetado e tendo as raízes de seus chifres queimadas, em processo que mostra certo desconforto, embora fique sugerido que não há dor. As falas humanas são frequentes quando se está retratando processos da exploração bovina, e nela transparece o discurso relativista sobre o que, a princípio, poderia ser o mal causado aos animais. Os trabalhadores gostam das vacas e bezerros, lidando com distanciamento profissional, mas ora quebrado por gestos de afeto.
Enfim, acompanha-se de tudo: extração de leite, parto, alimentação, sono, transporte, pastagem, consulta veterinária, cruzamento etc, até que o esgarçamento desses ciclos conduz ao momento em que Luma, já desde o início com idade avançada, desenvolve uma grave inflamação mamária, graças às muitas vezes em que foi ordenhada por máquinas. Neste momento, os funcionários da fazenda a levam para um local separado e abatem-na.
Protagonista periférico
Arnold chegou ao Festival de Cannes com seu inusitado filme
Pode-se dizer duas coisas, uma pertencente a todos os documentários, outra a este, especificamente. Uma: é muito difícil definir o que é ficção e o que é documentário. A simples existência da câmera pode não mudar nada para o animal – embora possa, também –, mas seguramente muda para o humano. E daí deriva a segunda: em sendo aqueles que estão entre e com as câmeras, e que definem os momentos da vida de Luma, não seriam eles as personagens principais?
“Vaca” é um documentário sobre o humano, muito mais que sobre os animais. É sobre os processos que são implementados para que a vaca seja útil ao humano. Para determinar o sentido de existência deste animal, o que afasta o filme de uma perspectiva eco-woke. Embora explore as contradições da exploração animal – separação do bebê, adoecimento por superexploração –, o filme mostra como tudo é fruto do trabalho humano, de gente que, indo e vindo nas telas, dá duro para que a criação da vaca renda frutos não para um bilionário latifundiário, mas para as famílias que tocam uma fazenda no interior da Inglaterra.
Entre muitos filmes sobre animais e humanos, produzidos nos recentes anos de ambientalismo fundamentalista, “Vaca” traz uma perspectiva interessante sobre o bovino como um ser, sim, sacrificado, mas prestador de serviços importantes para a humanidade. Não à toa, símbolo da alimentação e do bem-estar, embora seu abuso provoque problemas fundiários e criação desregulamentada, em que excessos possam ser cometidos para visar ao lucro. A relação com o animal pode não ser predatória, sobretudo se passa por famílias trabalhadoras, e não pela simples lógica extrativista e capitalista.
Não é um documentário que marca a vida de quem vê, seguramente. Mas é bom como distração, já que não exige demais do espectador.