Pequena Miss Sunshine, o vovô doidão e o humor incorreto

O que uma família é capaz de fazer pela felicidade de suas crianças? Que contradições existem dentro de uma família e são superadas porque todos se amam, apesar de não terem razão para isso, a não ser terem nascido e sido criados uns com os outros? Esse é o tema de um clássico que envelheceu bem como cinema, mas mal como tema em debate na sociedade: Pequena Miss Sunshine (2006), de Jonathan Dayton e Valerie Faris, uma produção que vem ultrapassando quase duas décadas com sua delicadeza e capacidade de gerar empatia.

Um road movie disfuncional (sem spoilers)

Na história, uma garota chamada Olive (Abigail Breslin), que tem entre seis e dez anos, sonha e participar de um concurso de beleza infantil, por si só um misto de idiotice com indecência, visto promover crianças como se fossem adultas numa competição de apelo, inclusive, sensual. Afinal, nada mais é que a reprodução de um concurso de miss com pequenas adaptações. O fato, porém, é que a menina está completamente fora dos padrões de modelos candidatas a miss, adora tomar sorvete, usa óculos e tem o jeito espontâneo e desengonçado de toda criança.

O que ocorre é que ela é chamada ao concurso, após enviar uma carta à empresa que promove o evento, muito possivelmente porque todas as candidatas foram chamadas, já que desde o início está posto que ela não atende aos requisitos para a disputa. O sonho dela, no entanto, torna-se possível, mas um outro obstáculo aparece: o pai (Greg Kinnear), que trabalha vendendo cursos de autoajuda para enriquecimento, sem ele mesmo ter dinheiro para a casa, não tem recursos para viajar, ainda mais porque ajuda a manter a esposa (Toni Collette); o seu próprio pai com câncer (Alan Arkin), que além disso vem a ser um velho tarado viciado em pornografia; um cunhado (Steve Carrell) que recém voltou de um hospital psiquiátrico por tentativa de suicídio, após ser abandonado por seu parceiro numa relação homoafetiva; e outro filho (Paul Dano), este que sonha em ser aviador e está num interminável voto de silêncio como promessa, embora não saiba que tem problemas de saúde que o impedem de sê-lo.

Inconformados com a possibilidade de frustrar Olive de partida, dizendo que não têm dinheiro para viajar mais de mil quilômetros do interior dos Estados Unidos até a Califórnia, eles decidem dar um jeito. Nesse caminho, eles têm de lidar com uma Kombi defeituosa, cujo motor só pega no tranco, portanto precisa ser empurrada até dar rotação e funcionar, deixando ao pai a tarefa de acelerar e aos familiares a missão de empurrar e depois correrem, um por um, para entrar no compartimento dos passageiros. A cena deles correndo atrás da Kombi, inclusive, é a capa do filme, dos tempos em que ainda importavam as capas de VHSs e DVDs, o que rendia montagens icônicas como a de “Pequena Miss Sunshine”.

A viagem para a Califórnia é marcada por muitas peripécias e desventuras, num road movie de comédia que provoca ao espectador uma relação íntima com a família disfuncional de Olive, que se encontra durante a viagem e se fortalece como núcleo familiar. Um tipo de narrativa que, à época, parecia bastante progressista, mas hoje poderia ser censurada pela polícia dos costumes politicamente corretos, graças a um desfecho que, possivelmente, faz arrepiar os cabelos de conservadores e identitários por aí.

Um vovô fora dos padrões (com spoilers)

Duas figuras se destacam na narrativa, quase se polarizando. Uma, a do tio depressivo, um homem que a princípio era contemplativo e intelectual, sendo responsável pela principal tese contemporânea sobre Marcel Proust, mas que deixou o cargo de professor universitário em razão da doença. Não é capaz, ainda, de esquecer o marido, que o deixou por um garoto muitos anos mais jovem. O outro, o avô, o rockeiro hétero-branco-americano típico, amante das drogas e da putaria, que viciou-se em pornografia após ter de conviver com um câncer de pulmão, possivelmente causado pela quantidade de cigarros que fuma.

No caminho para a Califórnia, enquanto o tio é a pessoa mais séria da viagem, e entra ainda mais em depressão quando, numa parada, reencontra o marido em viagem com o jovem por quem foi trocado, o avô é o doidão, que manda o mesmo tio comprar revistas pornô e o incentiva a comprar algumas para ele também. Desta forma, o professor volta com metade das revistas hétero, metade gay, tudo isso enquanto o grupo termina de comer no restaurante da parada. Esse perfil é fundamental para levantar suspeitas sobre o vovô, que está ensinando a Olive os seus passos para a apresentação ao vivo no evento.

Ninguém entende direito que passos eles estão ensaiando, sempre às escondidas, e esse acaba por ser o mistério da história. Porém, no meio do caminho, o avô morre. E, agora, como não têm como voltar, mas também não podem continuar com o corpo do avô no carro, eles roubam seu corpo do hospital onde ele deu óbito, colocam-no enrolado num lençol no porta-malas, e seguem viagem pelo deserto do oeste americano. Obviamente contrariando a legislação, que prevê o cumprimento de burocracia e encaminhamento para enterro ou cremação por entidades autorizadas.

O azar é que, por outra razão que não o corpo, eles são parados pela polícia, que resolve inspecionar o carro, mas os guardas não encontram o cadáver transportado ilegalmente porque, logo ao lado dele, são chamados à atenção por uma série de revistas pornô, as quais atribuem ao pai, que está ali resolvendo o perrengue. O guarda sorri e sente que o pai é um dos seus, até que encontra as revistas gay, no que olha para ele com olhar de estranhamento. Uma piada de constrangimento que, dificilmente, existiria nos dias de hoje.

Todavia, o que mais distancia “Pequena Miss Sunshine” dos padrões morais vigentes nos últimos anos, e que mesmo na época foi de se descabelar, é o desfecho e a apresentação de Olive. O evento é apresentado já como se espera: um desfile de futilidade e de exploração infantil, já que submete meninas de seis a dez anos a situações vexatórias, como desfilarem em passarelas ou se fantasiarem de vaqueira. A família de Olive fica estarrecida e, ao mesmo tempo, amedrontada pela vergonha que a filha pode passar, não estando à altura das garotas ricas e super-dotadas que participam do concurso.

Entretanto, quando chega seu momento, Olive – e seu avô morto – surpreendem a todos. A apresentação da menina consiste numa performance de prostíbulo, semelhante a um strip-tease, só que sem a nudez, ficando a garota de maiô, engatinhando e simulando garras de leoa, balançando os quadris e empinando a bunda. Quando os guardas tentam impedir a apresentação, o pai, a mãe, o tio e o irmão saem das cadeiras do teatro e se engalfinham com eles para atrasá-los, garantindo que a menina conclua o inusitado número ensaiado com o avô pervertido.

O escândalo provocado à boa sociedade americana é tal que, logo, a menina é desclassificada e o evento é interrompido, recebendo os aplausos apenas de um entediado pai subversivo, como que uma versão jovem do avô, que sente-se quase vingado com performance de Olive, pelas muitas vezes em que, para acompanhar a filha, teve de lidar com a estupidez daquele evento. O filme termina com a família toda reunida na delegacia, Olive obviamente sem o prêmio, e identificado o crime de ocultação de cadáver.

Quem é, hoje, a boa sociedade?

Se, na época, o filme foi uma provocação aos conservadores norte-americanos, com o número artístico idealizado pelo avô situando-se no limite da polêmica, já que, apesar de ser preservada a inocência de Olive, para fins efetivos ele a expôs como prostituta, hoje possivelmente o filme seria condenado pelo reacionarismo de esquerda que toma a indústria americana. Atualmente, o filme não está em discussão porque está meio fora dos holofotes hollywoodianos, tornando-se um clássico B, o que o poupa da fúria de certos especialistas.

No entanto, numa obra em que há duas cenas constrangedoras envolvendo homossexualidade e objetificação do corpo feminino infantil, parece pior o fato de que esta última é o triunfo final de Olive e, vejam só, do avô. O velho tarado, sexista e que tem uma ideia pervertida para sua neta, ao fim, é o herói da história ao lado dela. Afinal, é quem lhe permite a realização do sonho, a superação da desvantagem em relação às meninas padronizadas e a possibilidade de perder de cabeça erguida. Aliás, cabeça erguida em razão de estragar o evento e, muito possivelmente, sequer saber do resultado, uma vez que foram todos para a delegacia.

O cinema dos anos 1990 e 2000, na saída dos blockbusters e histórias banais dos anos 1970 e 1980, rendeu incríveis produções politicamente incorretas, como “Pequena Miss Sunshine”, “Hitch – O conselheiro amoroso” (2005), “Borat” (2006), “Uma babá quase perfeita” (1993) dentre outras, que se esforçavam por fazer rir e se divertir de quaisquer coisas, sem grandes preocupações em chocar, generalizar, ofender. Afinal, existia na obra de arte um contrato com seu consumidor: hoje, fazemos troça de você, para que amanha você possa rir dos outros. “Um dia a casa cai” (1986), com Tom Hanks, começa mostrando o Brasil como um paraíso de praias e sexo fácil, e foi um filme de sucesso por aqui.

Atualmente impera o contrário: ninguém ri de quase nada e, especialmente, de ninguém.



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