Doutrinador, Destro e o ceticismo que leva à ignorância

Quem acompanha o Literatura e Jornalismo já percebeu que este que vos escreve, Hélio Rocha, não se furta a discutir temas conservadores com entendimento e respeito, ao mesmo tempo que se mantém crítico a cânones do progressismo, este último com o qual perifericamente ele se alinha. Bem, na verdade já esteve mergulhado de cabeça no petismo e toda a parafernália estatista e identitária que ele embute, mas afastou-se aos poucos daqueles dogmas por conta de tudo que presenciou e viveu em meio à esquerda real.

O preâmbulo pessoal é para começar a análise sobre duas obras do cartunista Luciano Cunha, uma proposta interessante de criação de super-heróis nacionais, de excelente qualidade narrativa, mas que com o tempo esbarrou na profundidade com que adentra no ideológico, tornando-se tão falso educador quanto quaisquer das produções “woke” que contaminam a indústria cultural. Ainda para um desiludido da esquerda com diálogo franco e aberto com a direita, “O Doutrinador” e “Destro – o martelo da direita”, as narrativas mais conhecidas do autor, vão fundo demais nas prosopopeias e delírios de uma direita que não deixa a dever para os tresloucados ongueiros e identitários, cujos delírios não podem ser citados aqui por ausência de departamento jurídico nesta empresa.

Do herói cético ao ignorante exaltado

O primeiro título de Cunha a ganhar repercussão foi “Doutrinador”, publicado desde 2013, em que é narrada a história de um ex-soldado do regime militar contra as guerrilhas comunistas, que resolve se tornar um justiceiro da elite empresarial e política corrompida no Brasil. Seu lançamento, que já vinha sendo planejado desde o final dos anos 2000, ocorreu em 2013, bem durante a onda de protestos das jornadas de junho. Entrou em sinergia com os atos públicos e foi impulsionada em popularidade, chegando a ganhar um segundo volume coassinado pelo músico Marcelo Yuka, ex-baterista da banda “O Rappa”. Cadeirante, vítima da violência urbana do Rio de Janeiro, era um símbolo para a proposta da HQ de Cunha. Durante o processo da Operação Lava-jato, ganhou filme homônimo em 2018, com Kiko Pissolato no papel principal.

O Doutrinador, protagonista que dá nome à obra, perde a família vítima da violência e da omissão do Estado, jurando vingança contra os responsáveis. Todos. Desde o bandido até os políticos e empresários corruptos que fizeram os familiares serem mal atendidos no hospital. E, com seu treinamento militar, é muito eficaz em eliminar pessoas com tiros de precisão feitos do alto de edifícios, invasões de prédios públicos sob bombas de fumaça etc. Tudo com um bom Ezio Auditore, de Assassin’s Creed, só que nos tempos contemporâneos. Para esconder sua identidade, o Doutrinador usa uma ótima indumentária para o anti-herói soturno e incorreto que se propõe a ser: uma máscara de gás das Forças Armadas.

Os episódios desenvolvem-se de forma linear, porém cheia de ação, não muito diferente do que fazem as narrativas das gigantes norte-americana, Marvel e DC. Nesse caso, a HQ da Super-Prumo, empresa que publica quadrinhos nacionais conservadores, entrega até um herói mais interessante que os americanos, na medida em que é de carne e osso, falível, situando-se como herói de quadrinhos pela empatia que desperta no leitor angustiado com a situação da corrupção e da segurança no Brasil. A ideia é não ter vilão, perifericamente ter mocinha, pois a ênfase é na perícia do Doutrinador em identificar corruptos, planejar matá-los e fazer a execução sempre de forma criativa e de extrema acurácia, retornando para o esconderijo.

Entretanto, em volumes subsequentes a série falha muito. Dos políticos tradicionais, porém ficcionalizados, o roteiro começa a demonstrar clara semelhança entre os alvos do Doutrinador e personagens da política real, como o presidente Lula e a ex-presidente Dilma. Num volume à frente, já durante a pandemia, começa a situar a narrativa em torno de um inimigo maior: o vírus chinês, que é quando “O Doutrinador” se perde em delírios direitistas e passa a ser uma produção política para convertidos. E Luciano Cunha se aprofunda no sectarismo quando planeja “Destro – o martelo da direita”, que vai muito além e transforma o conspiracionismo e o negacionismo no eixo narrativo da série, que compartilha cenário com “O Doutrinador”.

O martelo da ignorância direita

Quando Cunha amplia o cenário interessante e divertido de “O Doutrinador”, ainda que a publicação já estivesse degenerando para a politização irracional, permitia-se certa esperança de que uma nova personagem enriquecesse a série. Porém, a história do paramilitar João Destro, sobrevivente de uma distópica ditadura socialista mundial imposta pela China, Rússia, Venezuela, o PT e o que mais a narrativa aponta como culpados, é delirantemente focada não mais no anti-heroísmo cético do Doutrinador, mas no ódio à esquerda de João Destro.

Para piorar, o cenário é uma São Paulo pós-apocalíptica em 2045, em que o socialismo transformou a cidade num misto de escombros e esgotos (não sei qual a cidade socialista em que ele se baseou, já que todas que eu visitei, na China, são super avançadas). E a ferramenta para tal foi a vacina contra a Covid-19, na sequência do último volume de “O Doutrinador”, em que já era enfrentado o vírus chinês. Destro, no caso, consegue perceber aos males do comunismo porque não se vacinou, e não foi, por isso, tomado pela lavagem cerebral dos nanocircuitos inoculados pela droga. Eventualmente, mas não permanentemente, João Destro e o Doutrinador se encontram na história, embora cada um cumpra com seu objetivo sozinho: um quer destruir os poderosos, outro quer recuperar a família levada pelo regime.

A solidão é uma marca das histórias de Luciano Cunha, o que, em si, é um excelente recurso. Heróis que atuam como lobos solitários, emergindo para trabalhos em cooperação e para a coletividade apenas pontualmente, movem o imaginário de quem acompanha os quadrinhos. Ikki de Fênix, de “Cavaleiros do Zodíaco” (1986), é um. Wolverine, de X-Men (1963), é outro. Também é típico do trabalho de Cunha a elaboração de belíssimos cenários e traços, em edições em papel cartonado e full-color de excelente qualidade. São livros, todos, que agradam porque são bonitos de ler, não somente pela história, que vai bem nos dois primeiros episódios de “O Demolidor”, mas se esfarela até chegar a “Destro – o martelo da direita”.

Sr. Agora: herói do regime militar

Em recentes entrevistas, Cunha divulgou seu próximo material, ainda sem dizer se fará parte do mesmo universo de João Destro e do Demolidor. Ele será o Sr. Agora, um herói aposentado inspirado no Capitão Asa, apresentador de programa infantil da TV Tupi entre 1968 e 1979, e que atuava basicamente como um garoto-propaganda da ditadura. Segundo propõe o autor, o Sr. Agora vai retornar da aposentadoria, mesmo idoso e visivelmente fora de forma, para combater o crime na favela onde teve de ir morar, devido a ter sido desvalorizado e esquecido após o fim da ditadura. A pobreza e esquecimento, claro, são o link para se discutir os bons valores do regime, os quais o herói vai demonstrar aos leitores.

Mais uma vez, é uma interessante personagem, bem desenhada, que promete em si uma boa história, mas que se perde no comprometimento ideológico. Se as produções americanas e o identitarismo das produções Disney irritam, e até causam desinteresse por cansaço, o caminho tomado por Luciano Cunha igualmente sufoca o leitor. Quando é proposta uma narrativa escapista, daquelas para descansar a cabeça, tudo que não se quer é mensagem política, de forma tão intensa que, melhor seria, tivesse o leitor procurado uma plenária do PL.



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