
A Garota da Agulha e o surgimento do desprezo à vida
Os anos seguintes à Primeira Guerra Mundial foram um período de miséria profunda na Europa, o que se abateu mais fortemente sobre os povos germânicos. A Alemanha fora devastada após se render à Tríplice Entente em 1918 e os países do norte, que lhe eram economicamente dependentes, experimentaram com ela o que, em padrões europeus, seria o fundo do poço econômico, com fome e desabrigados por toda parte. É esse o cenário de “A garota da agulha”, filme de terror psicológico dinamarquês, indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025, que narra as desventuras de uma mulher operária na Dinamarca pós-guerra.
A guerra e o operariado feminino (sem sploilers)
A duas grandes guerras foram o marco do século XX para a chegada da mulher ao mercado de trabalho. Com o emprego da mão de obra masculina no serviço militar em campos de batalha, a capacidade produtiva das indústrias e serviços ficou dependente de mulheres, idosos e crianças. Evidentemente, esta recaiu majoritariamente sobre o primeiro desses grupos, tornando as mulheres o fundamento econômico de países que se esgarçavam financeiramente na guerra. O trabalho feminino, portanto, garantia a vida nas cidades europeias, ao mesmo tempo em que via seu esforço escorrer pelo ralo da guerra.
O uso da mulher como força de produção levou a que esse cenário não tivesse retorno, não tanto pelo protesto das mulheres em continuar, mas porque elas precisavam de melhores meios de vida numa Europa que já não tinha mão de obra masculina economicamente ativa, metade morta na guerra e outra incapaz, idosa ou imatura. As corporações tinham de aceitar a nova conformação e garantir às mulheres direitos trabalhistas e políticos.
No filme, Karoline (Victoria Carmen Sonne) é uma trabalhadora do setor têxtil, que costura fardas para militares, mas acidenta-se eventualmente com a agulha das máquinas de costura, dada a sua exaustão (o primeiro motivo para o nome do filme). Com baixíssimo salário, tem dificuldade para pagar um local para viver, já que o marido está desaparecido na guerra. Entre diálogos entre ela e seu senhorio, além de cenas cotidianas de Karoline buscando viver nos subúrbios da Copenhague pós-guerra, entendemos a crueza e a miséria da Europa proletária. A força da protagonista a conduz a encontrar saídas, e numa delas ela se envolve amorosamente com o chefe, tendo dele a promessa de melhora de vida, o que termina em gravidez. O homem foge da raia na última hora e deixa Karoline sozinha com o bebê ainda não nascido, e já sem a oportunidade de trabalhar na fábrica têxtil.
A continuidade da história lhe reserva a volta do marido, mutilado de guerra, e o encontro com um indecoroso trabalho: depois de dar à luz, entregar seu bebê para uma senhora chamada Dagmar (Trine Dyrholm) que cobra para intermediar adoção de crianças. Karoline passa a servir, depois, como ama de leite para outros bebês que a mulher recebe, mantendo-se produtiva enquanto crianças vêm e vão. A chegada de Karoline ao projeto de Dagmar vai mudar a vida da personagem principal, visto que ela se percebe envolvida em muito mais que um sistema de adoção, ao passo que deixa o marido à sua espera, enquanto cumpre com a função em tempo integral de amamentar bebês.
A miséria dinamarquesa, na hora e meia seguinte de filme, vai sendo desvelada ao espectador sem atenuantes, numa linguagem que lhe permite viver os tormentos das pessoas, e sobretudo das mulheres, na Europa devastada pela guerra.
Duas formas de matar (com spoiler)
A mente de Karoline já está devastada pela situação social em que vive, porém a chegada do marido mascarado, escondendo um grave ferimento no rosto que impossibilita até que ele coma, transforma sua vida num poço de falta de sentido. Os dois se separam e, num momento, ela o reencontra num circo de modelo “freak show”, onde o marido é apresentado como aberração causada pela guerra. Lá, ela descobre que ele tem a metade esquerda do rosto estraçalhada e com um olho de vidro, e o restante da cara mal enxertado e costurado, restando uma vista e metade da boca, por onde só come com a mão e mal consegue beber água. Ademais, todas as noites ele tem pesadelos delirantes, gritando terrivelmente.
Tentando fugir da situação de ser mãe com o marido inválido e sua incapacidade de trabalhar, a protagonista vai a um banho público com uma agulha de costura (aqui, a segunda razão para o nome do filme) e tenta um aborto, sendo malsucedida. Neste contexto, ela é levada a uma senhora chamada Dagmar, que recebe bebês para encaminhá-los para adoção. A proposta que a senhora lhe faz é de receber e encaminhar seu bebê, e ela ajudar num negócio paralelo à loja de doces que mantém no centro da cidade. É dada a Karoline a função de amamentar bebês para adoção, como já citado. E todos vêm e vão muito acima da demanda imaginada para uma provinciana Dinamarca e uma pequena Copenhague. Quando Karoline se apega a um dos muitos bebês que amamenta, atraindo ciúmes da filha de Dagmar, uma menina grande que alimenta também no peito de Karoline, a protagonista segue a patroa para saber o destino do bebê que foi separado dela. Flagra a mulher assassinando a criança sufocada em seu peito, jogando-a num boeiro escondido no fundo de um beco.
A relação muda, de uma amizade doentia em que ambas inclusive se drogam juntas, para um momento de ojeriza, que não impede Dagmar de seduzir uma atormentada Karoline a matar outro bebê, pressionando-o entre as duas, deitadas na cama. Karoline reage e tenta escapar da ação que aceitara perpetrar na inércia de seu estarrecimento, mas não é capaz de conter a força da senhora. A protagonista se vê imersa na maldade da patroa, longe do marido. Descobre que ela teve, além da filha, Erena, outros cinco bebês, todos natimortos. E que por isso sentia prazer em matar recém-nascidos, prestando um favor a mães desesperadas, dizendo encaminhá-los para adoção, mas, na verdade, recebendo-os para matá-los. A psicopatia é tal que ela mantém um diário listando bebê por bebê que matou, num tipo mórbido de colecionismo.
Ao fim, uma das mães descobre o processo, o que não é explicado detalhadamente ao espectador. Simplesmente, de tantos bebês já assassinados, um dia batem à porta, já tendo a polícia descoberto o negócio de Dagmar. Karoline retorna ao marido, ainda trabalhando no circo, mas mais recomposto da guerra, e adota Erena. Dagmar responde a julgamento e é condenada à forca, mas ainda dizendo-se heroína das mulheres da Dinamarca, porque deu a elas saída para os bebês indesejáveis que carregavam.
O triunfo de Dagmar: a nova vida como incoveniente
Estranho imaginar que um filme como “A garota da agulha” tenha estado no Oscar 2025, visto colocar em xeque a ideia da gravidez indesejada e da morte de bebês como solução para um fator conveniente. A tentativa de aborto de Karoline não foge ao paralelo com os bebês mortos sufocados no colo de Dagmar, muito embora não tenha sido, possivelmente, o intuito de quem roterizou.
A história é apontada como real, o que não fica claro no filme. Sabe-se que foi uma mulher de mesmo nome, que matou até 25 bebês entre 1913 e 1920, e que morreu em 1929, tendo a pena de forca comutada em prisão perpétua, mas possivelmente sendo assasinada na prisão. Fato é que, em meio às transformações da Europa quanto à situação econômica das mulheres, sem mais as garantias familiares, já nascia ali a ideia do bebê como figura indesejada, e a senhora assassina de bebês como a solução clandestina. Possivelmente o roteiro busca discutir o aborto clandestino e malsucedido, comparando-o a vida assassinada que poderia não existir se houvesse aborto legal e seguro.
Ou seja: não doeria se os tivessem matado antes, conforme o pensamento majoritário em nossos dias. Ou... majoritário para certa classe média. Porque, como o humano muitas vezes passa recibo da moral que lhe é eterna, termina por suscitar o paralelo inevitável entre a morte do bebê de forma tecnica e higienizada no ventre, ou nas mãos de uma senhora que os sufoca e joga no bueiro, visto o fundamental da história não ser a psicopatia da mulher. Não se trata de uma história de serial killer. O centro da narrativa é o desamparo da mulher no mercado de trabalho, saindo de uma suposta opressão familiar e transitando para a selvageria do capitalismo, e a dispensabilidade da vida em sua fase inicial e dependente, posta de lado em função dos interesses e conveniência econômicos, no mundo moderno.