
ChatGPT é técnico, mas não conta histórias
Uma febre recente tomou a internet: o uso de imagens geradas pelo ChatGPT para converter fotos em ilustrações do Studio Ghibli, famoso e premiado produtor de animes em longa-metragem, liderado pelo lendário animador Hayao Miyazaki. Muito provavelmente, a “trend”, assim chamadas as correntes repentinas de manias nas redes sociais, partiu de algum patrocínio da própria empresa que administra o aplicativo, a fim de divulgar sua nova ferramenta e transformá-la numa plataforma para diversão e criação de conteúdo.
E foi por aí que o Literatura e Jornalismo resolveu se aventurar, incorporando por sete dias a ferramenta, em sua versão paga. O objetivo foi reproduzir, em formato de quadrinhos americanos, a trajetória de seu fundador, Hélio Rocha. De diversas formas, ficou constatado, o aplicativo consegue desenvolver imagens e complexidade dignas de um ilustrador humano, o que preocupa a respeito do desmonte que isso pode causar a toda uma categoria profissional. Com alguma paciência para fazer ajustes, o aplicativo entrega o que se pede.
Porém, um entrave gravíssimo à sua operação são os filtros de segurança, em que a empresa, de partida, censura diversos aspectos de um desenho irracionalmente. Simplesmente existe uma database de temas proibidos ou considerados sensíveis, de modo que explorar alguns deles de forma artística e honesta – por exemplo, um assassinato numa história de herói, cometido pelo bandido que o herói vai combater – não pode ser acionado pelo sistema do ChatGPT porque seria a “reprodução de um crime”. E assim indeterminadamente.
Carreira de Hélio Rocha
Hélio com Luciane Faquini, sua primeira editora (acima), e com Leonardo Costa, seu fotógrafo e melhor amigo na empresa (abaixo)
Escolhi quatro momentos da vida de Hélio Rocha para retratar em quadrinhos, no padrão ilustrativo de comics americana, especialmente Jim Lee e Alex Ross. O resultado, do ponto de vista imagético, excedeu expectativas, muito embora sejam necessários acertos repetitivos, porque quando você corrige um problema, a imagem aparece com outro, e assim é preciso dar comandos até que a ferramenta equilibre todos os elementos corretamente. Mas, em termos de construção de imagens, técnica, ela vai realmente bem. O problema é dar narrativa.
Um desses momentos foi a sua estreia como jornalista de política no jornal Tribuna de Minas, de Juiz de Fora. Em sua primeira semana, Hélio se viu na cobertura das manifestações do Junho de 2013, que acabaram resultando no Golpe de 2016, contra a presidente Dilma Rousseff (PT, 2011-2016). Naquela ocasião, manifestantes invadiram a Câmara Municipal de Juiz de Fora, realizando lá uma plenária livre, conduzida por estudantes, trabalhadores e minorias.
Hélio Rocha e Leonardo Costa, em cobertura das manifestações do Junho de 2013
Este excelente momento, que, ainda que não o fosse, foi parte importante da carreira do jornalista em questão, foi censurado por incentivar a violação de prédios públicos e desrespeito à autoridade do Estado. Ou seja, de um ponto de vista narrativo e autobiográfico, em que predomina o material jornalístico, é ilegítimo retratar uma ocupação de espaço público. O mesmo repórter cobriu os 50 anos do golpe e descobriu um torturado do regime militar, mas para esse momento o recurso nem foi tentado.
E momentos de amor? Como que faz?
Outro momento foi uma saída de Hélio Rocha com uma pessoa que amou, durante um tempo de sua vida, e por quem ainda nutre imensos sentimentos, embora as coisas não tenham dado certo. Hélio, às vésperas de ir para a África, sem saber o que seria dele lá, encontra com a moça para despedir-se. Conversam numa cafeteria que também era locadora e livraria. Despedem-se amigavelmente e um pouco sentimentalmente, mas sem mais que um abraço.
O encontro de despedida com amada, aqui sem nome, mas ainda nalgum lugar em seu coração
Neste contexto, o aplicativo considerou fazer os desenhos, mas divergiu do humano, infantilizando os desenhos para proteger a identidade da mulher. Vejam, não há o nome dela sequer aqui, neste texto, quanto mais num aplicativo que possa reter informação. Ela foi descrita apenas verbalmente, até acertar suas características. E ali havia um desenho, em que ela poderia ser várias pessoas, e Hélio, o Chico Bioca ou o Tiago Abravanel. Desenhos se tornam genéricos se comparados a humanos. De qualquer forma, a garota em questão tinha vivido uma situação real e banal, e não foi exposta a nada constrangedor. Ainda assim, diversas estratégias tiveram de ser implementadas pelo humano ao comando do aplicativo, a fim de driblar a infantilização do traço.
A parte da África conta a história de quando, entre outras peripécias, o jornalista teve o quarto invadido por um babuíno (guarde a informação sobre o babuíno), trabalhou com biólogos na preservação animal e, entre idas e vindas, flertou com uma garota que vinha a ser a filha de um dos mais prestigiados atores da história de Hollywood (aqui não nominados, ela e ele, por questão de preservação de privacidade). Um acaso formidável da vida deste repórter, tê-la visto de pijaminha quase transparente numa tenda do deserto, e vindo a saber quem realmente ela era dias depois de sua partida. Acerta-se essa duas vezes na vida, mas foi um quase.
Contudo, sabe-se lá por que a imagem com uma pessoa amada, num encontro carinhoso e inocente, com alguém com quem se pretendia casar se tudo funcionasse, é censurada, ao passo que o flerte quase terminado em sexo casual com uma filha de artista famoso é aprovada – no dia em que as coisas aconteceriam, um temporal no deserto levou metade das barracas embora e todos tiveram de voltar às pressas para a base, onde ela tinha um esquema de segurança severo, que era driblável na distância do deserto com quatro ou cinco pessoas correndo atrás de abutres, mas não perto do que, Hélio soube depois, era pessoal do próprio Estado americano em serviço paralelo.
Entediante trabalho dos biólogos (acima) aproximou Hélio e a filha do ator (centro), o que quase terminou da melhor forma (abaixo)
Babuína Shonnie invadiu o quarto de Hélio e outos jornalistas, o dinamarquês de ascendência indiana Daniel e o chinês Cheng Yi
Por fim, o quarto foi a cobertura deste jornalista sobre o desastre de Mariana, em que o ChatGPT pareceu especialmente mais descontrolado. Ao gerar imagens rapidamente e bem construídas sobre a viagem sobre a lama, a cidade destruída e o encontro com o último morador de Paracatu de Baixo, vilarejo destruído pela lama ao lado de Bento Rodrigues, passou a sensação de que o tema era palatável. Entretanto, ao retratar a posterior visita do repórter à foz do Rio Doce, contaminada pela lama, o sistema bloqueou um dos momentos mais bonitos de sua visita.
Quando Hélio e a bióloga Flávia encontraram uma tartaruga marinha, com sua desova preservada, apesar do estrago da lama, mantendo a vida natural em resistência contra a devastação causada pelo humano. O aplicativo insistiu, a partir daí, a revelar somente imagens sem a tartaruga, o que fez a imagem perder o sentido. O argumento era proteção a animais silvestres em relação com humanos. Isso mesmo. Mesmo que seja uma bióloga que cuida da preservação deles. Além do que, retomemos a informação do babuíno: se ele pôde ser retratado, por que não a tartaruga? Vê-se que o próprio critério não é claro.
Hélio Rocha e seu novo fotógrafo, Marcus Martins, para a agência Mais Comunicação, buscando os escombros da lama em Mariana
Eles se reúnem, na volta, com as diretoras da Mais, Desirée Couri e Andreia Nascimento
A decisão moral é humana
Apenas o ser humano tem capacidade de discernimento sobre qualquer coisa. A operação com filtros automáticos, do ChatGPT, é legítima se imaginarmos que a ferramenta, se usada desreguladamente, pode remover roupas de mulheres em fotos reais. Ou pode ensinar uma pessoa a montar uma bomba caseira. Imagens glorificadoras de nazistas, ou mesmo uma HQ como a tentada para Hélio Rocha, porém contando amigavelmente e com leveza a história de Hitler. Tudo isso aconteceu, ainda, sem que a produção tentasse retratar seus anos em Palestina e China, que despertaria travas ainda mais severas, possivelmente. Especialmente aquela primeira.
O problema é que os filtros automáticos não estabelecem juízo de valor. Eles simplesmente elegem temas sensíveis e seguram a liberação das imagens, não importando sequer se você tem a autorização de uma pessoa. Talvez um casal casado não consiga fazer uma reprodução picante de si mesmos. Neste momento, o ilustrador humano não tem no chat uma ameaça ao seu trabalho, ao menos do ponto de vista da ilustração narrativa. A função de transformar pessoas em desenhos, afinal, existia como um ganho para lá de complementar para os ilustradores, que faziam isso em alguns eventos e nada mais.
Portanto, para se narrar uma história com uso de imagens, muito provavelmente o ilustrador ainda terá longa carreira, em que pese a sua necessidade de se readequar, tal como foi com os jornalistas e a chegada da comunicação via redes sociais.