Petra Costa, Elena e a tragédia da solidão

A documentarista Petra Costa se consolidou, nos últimos vinte anos, como a principal cineasta brasileira neste campo, o que ficou sólido com a sua indicação ao Oscar 2020, com o filme “Democracia em vertigem”. Nele, ela narra sobre o Golpe de 2016 no Brasil, seguido da vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (PSL/PL, 2019-2022), o que muito indiretamente envolveu suas origens familiares, já que seus avós foram fundadores da Odebrecht. Os escândalos de corrupção envolvendo a construtora foram parte fundamental da indignação com a situação política do país, que levou parte da população a apoiar o golpe, a prisão do então ex-presidente e atual governante, Luís Inácio Lula da Silva (PT, 2003-2010/2023-atualmente), e a eleição de Bolsonaro.

Abordando um tema sensível aos norte-americanos, numa Academia do Oscar opositora da versão Tio Sam de Bolsonaro, o então e atual presidente Donald Trump (Republicanos, 2017-2020 e a partir de 2025), a cineasta conseguiu ser abraçada pela indústria americana e está aí para novas indicações.

Antes, porém, seus trabalhos eram ainda mais intimistas que o envolvimento dela própria na obra que fala sobre o golpe, que a tem como narradora em voz-over para transmissão das suas impressões particulares sobre o fato. Num deles, “Elena”, Petra talvez tenha demonstrado a sua capacidade de chegar aos limites da melancolia e introspecção, de certa forma dois marcos de sua linguagem, ao abordar a perda familiar com um fio narrativo instigante, ao mesmo tempo que permanentemente triste.

Uma irmã duplamente distante (sem spoilers)

Pedra, ainda bebê, com sua irmã mais velha, Elena

Elena, irmã mais velha de Petra, partiu de São Paulo, no fim dos anos 1980, para estudar em Nova York sonhando em ser atriz. Em tempos sem internet, em que a capacidade de se comunicar e entender a vivência dos familiares, num país distante, eram restritos a uma chamada de telefone ao dia ou mesmo uma por semana – muito cara e, portanto, comedida – ter um parente distante era uma experiência de silêncio. Confiava-se em que a pessoa estava bem, pedia-se notícias, mas, em geral, o que restava era desejar o melhor. Mensagens em tempo real e o dia todo, nada. Chamadas de vídeo para perceber as expressões da pessoa querida, nem pensar. Ter um parente no exterior, especialmente um jovem, uma irmã, uma filha, era um ato de esperança.

Por isso, a partida de Elena a tornou não apenas fisicamente distante. De certa forma, suas respostas aos estímulos familiares se tornaram esparsas, à medida que Elena se via drenada pela vida em Nova York. Quando em contato com a família, suas respostas eram sempre lacônicas e subterfugiosas. Entretanto, para uma família que, embora de passado muito rico, vinha se recuperando de prisões e torturas pelo regime militar – apesar do berço de ouro, pai e mãe eram parte do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na ilegalidade – e do consequente empobrecimento, viajar também a Nova York estava fora de questão. Era questão de confiar que tudo correria bem para Elena e que ela realizasse seus sonhos.

O filme, por fim, é filmado na linguagem característica de Petra: inscrever-se na obra, participando dela não como uma simples voz-over, mas como a narradora que, embora fale por sobre as cenas, faça-o como que escrevendo uma carta ao espectador, ou dividindo o roteiro com ele, a fim de guiá-lo por suas angustias. Desta forma, a Petra de 2012, quando foi gravado o filme, viaja à cidade que recebeu a irmã nos anos 1980, visitando todos os locais por onde ela passou, e montando o quebra-cabeça do que, a essa altura, já suspeita-se de que resultou uma perda.

O vazio existencial do imigrante (com spoilers)

Terra Estrangeira, pioneiro ao retratar o sofrimento na imigração 

Se o já histórico Walter Salles, que produziu “Central do Brasil” (1998), “Diários de motocicleta” (2004) e o mais vitorioso filme brasileiro, “Ainda estou aqui” (2024), narrou as angústias e a desordem de estar no exterior em seu debut, “Terra estrangeira”, de 1995 – em que um grupo de brasileiros emigrados para Portugal tem que lidar com as dores do não-lugar do brasileiro na Europa – Petra experiencia a mesma descoberta em sua jornada por Nova York. O filme parece feito para que as descobertas de Petra ocorram diante das câmeras, de modo que o espectador sinta-se ao lado dela.

Passo por passo de Petra são dispensáveis nessa descrição, em que vale muito mais o fluxo de pensamento e as lembranças que cada reduto novaiorquino, as ruas, o parque, o banco, o local onde Elena estudava e, por fim, o apartamento, estimulam diferentes memórias da então menina que esperava por notícias da irmã mais velha, a quem tinha como heroína e modelo. E, entre idas e vindas da narradora, vamos descobrindo sobre a depressão de Elena, que resultou em sua morte por suicídio, e acompanhamos a catarse de Petra ao redescobrir a morte da irmã.

O desabrigo do lugar distante

Petra Costa fazendo-se personagem nas ruas de Nova York, em busca da irmã sabidamente perdida

Viver no exterior é viver no isolamento, não importa quanto tempo se viva num país. No máximo, pessoas formam comunidades para se encontrarem, mas sempre cientes de que a cultura dominante não lhes é completamente acessível. Casos como o do Brasil, que adota amplamente os estrangeiros e os tornam brasileiros sem o passar de uma geração, são raríssimos, se não uma característica única da sociedade brasileira. Elena viveu frustrações profissionais e pessoais que não seriam tão graves, não fosse o isolamento da mesma terra estrangeira retratada por Walter Salles.

Porém, mais que a história de Elena, ressalta-se nesse filme a incrível capacidade narrativa e empática de Petra Costa, que sai do seu íntimo para desvelá-lo ao público, buscando agora a empatia dele próprio para caminhar junto às suas angústias e à sua tristeza. Se a nossa descoberta nos provoca catarse, a redescoberta dela própria, ressignificando tudo como pessoa adulta, é muito mais dolorosa e está sempre intercambiada com o espectador, de modo que não sabemos quem está mais tocado, ao fim de uma hora e vinte de cinema.

Em 2012, Petra se firmava como a principal documentarista do Brasil, depois de ganhar notoriedade com o curta “Olhos de Ressaca” (2008). Em 2014, viria o longa em documentário “O olmo e a gaivota”, sobre os desafios profissionais de uma atriz em gravidez, até “Democracia em Vertigem”. Recentemente, lançou “Apocalipse dos trópicos”, sobre a ascensão dos evangélicos neopentecostais na política brasileira. Seus direitos foram adquiridos pela Netflix.

 



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