
Marillion, Misplaced Childhood e a autobiografia erudita
A composição de álbuns conceituais é uma constante no rock progressivo, dada a sua propensão a rebuscamentos e ao mergulho na complexidade, que pede músicas que digam mais do que sentimentos expressos isoladamente, a chamada epifania, num dado conjunto de oito a doze músicas. No conceitual, o artista pode criar uma narrativa ou toda a discussão de um tema, fazendo-o harmonizar com a estética escolhida para a própria canção, ou seja, sua sonoridade, e também com a arte de capa do álbum.
Assim foi com “Missplaced childhood”, disco lançado em 1980 pela banda de rock progressivo britânica Marillion, até hoje uma das principais referências do subgênero. Possivelmente, o maior disco progressivo fora dos clássicos do Pink Floyd, “Dark side of the moon”(1973) e “The wall” (1979). Neste título, Marillion, que avançava pelo seu segundo álbum de estúdio, desenvolve uma história pessoal de personagem inominado, mas de profundas características autobiográficas do vocalista e líder da banda, Derek William Dick, conhecido por seu apelido “Fish”.
O garoto com o pássaro
A capa icônica, de uma criança segurando um pássaro, tendo ao fundo um arco-íris, remete à infância e inocência, um clichê de toda narrativa autobiográfica. Para um disco cujo título, transliterado, é “Infância Perdida”, o sentido é aceitável, embora previsível. Independentemente disso, dado o sucesso das músicas e, especialmente, do single “Kayleigh”, a arte de capa se tornou uma das mais conhecidas do rock progressivo.
Apesar do propósito minimalista, restringindo a narrativo ao íntimo de uma história pessoal, a simplicidade cede espaço à majestosidade da estética musical, bem complexa no uso dos sintetizadores, que eram a febre dos anos 1980. Também destacam-se as suas notas longas e emocionais, as notas e timbres reverberantes, os solos de guitarra expressivos não pela destreza, mas pelos caminhos delongados que percorre entre as notas, sempre em ascendente, compondo melodias que saem da introspecção reservada à linha vocal para libertar a canção e deixá-la, da contrição, partir ao seu aspecto solto e expressivo.
Resignação cínica ante o abandono
O ponto alto do disco é direto na faixa 2, “Keyleigh”, que veio a se tornar o clássico do Marillion, já tendo sido reinterpretada por artistas que foram companheiros geracionais da banda, como Phil Collins, que combina bem com sua sonoridade. A música fala da separação de um casal, por iniciativa do homem, que cinicamente pede desculpas assumindo a própria culpa, mas no fundo não reconhecendo a própria falha. Um tema não muito tratado à época, a desfaçatez do homem em romper relacionamentos para preservar uma suposta liberdade, exceção talvez a “Piece of my heart” (1968), canção blues de Emma Franklin, famosa na voz de Janis Joplin.
Acompanhe a canção e a letra
Do you remember?
Chalk hearts melting on a playground wall
Do you remember?
Dawn escapes from moon washed college halls
Do you remember?
The cherry blossom in the market square
Do you remember?
I thought it was confetti in our hair
By the way, didn't I break your heart?
Please excuse me, I never meant to break your heart
So sorry, I never meant to break your heart
But you broke mine
Kayleigh, is it too late to say I'm sorry?
And, Kayleigh, could we get it together again?
I just can't go on pretending
That it came to a natural end
Kayleigh, oh I never thought I'd miss you
And, Kayleigh, I thought that we'd always be friends
We said our love would last forever
So how did it come to this bitter end?
Do you remember?
Barefoot on the lawn with shooting stars
Do you remember?
The loving on the floor in Belsize Park
Do you remember?
Dancing in stilettoes in the snow
Do you remember?
You never understood I had to go
By the way, didn't I break your heart?
Please excuse me, I never meant to break your heart
So sorry, I never meant to break your heart
But you broke mine
Kayleigh, I just want to say I'm sorry
But, Kayleigh, I'm too scared to pick up the phone
To hear you've found another lover
To patch up our broken home
Kayleigh, I'm still trying to write that love song
Kayleigh, it's more important to me, now you're gone
Maybe it will prove that we were right
Or it'll prove that I was wrong
Sobre a letra, Fish afirmou em entrevista à revista Classic Rock, em 2014:
“Eu estava muito confuso na época, sabe, eu tinha muitos relacionamentos de longo prazo, muitos relacionamentos ‘profundos e significativos’ que basicamente eu tinha destruído porque eu estava obcecado com a carreira e para onde eu queria ir. Eu era muito, muito egoísta e eu só queria ser o cantor famoso, mas eu estava começando a me conscientizar dos sacrifícios que eu estava fazendo, e eu acho que Kay foi um desses sacrifícios que foram ao longo do caminho. ‘Kayleigh’ não era apenas sobre uma pessoa; era sobre três ou quatro pessoas diferentes. Os ‘stilettos na neve’, isso foi algo que aconteceu em Galashiels, quando eu me lembro de descer uma noite e nós dois estávamos realmente bêbados, e, você sabe, dançando sob um poste de luz, e ‘fugas ao amanhecer de corredores de faculdade banhados pela lua’ era parte da coisa de Cambridge.”
O restante do álbum, embora Kayleigh seja a canção de absoluto destaque, não deixa a dever para sua música principal, mas envereda mais para a técnica que para o emocional que faz de Kayleigh a mais importante composição da história da banda. Destaque para “Heart of Lothian”, faixa 5, homenagem da banda à região de nascimento de Fish. Àquela altura, o vocalista era figura central da banda e o álbum, quase inteiro, confunde-se com sua identidade. A faixa 3, “Lavender”, é referência a uma canção folclórica escocesa que marcou a infância de Fish. A banda, que na verdade era das cercanias de Milton Keynes, Inglaterra, terminara por assimilar a Escócia como sua nação predominante dentro do Reino Unido.
Ainda na ativa
Para quem gosta de se aventurar pelos sons do passado, já querendo escapar da obviedade de Pink Floyd e Queen, buscar Marillion como referência é uma excelente alternativa. A banda, que está na ativa desde 1978, é uma das exceções que sobreviveram ao conturbado período do rock setentista, levado por problemas de drogas, AIDS, acidentes de automóvel e além, é claro, das boas e velhas brigas que levavam à ruptura das bandas. O último álbum é de 2022, intitulado “An hour before it’s dark”.