Krakauer, o Everest e o turismo inapto pra natureza

A sede de conquista pertence ao humano, que muitas vezes comete atos irracionais para testar e superar seus limites. Quais, porém, seriam as fronteiras entre o auto-desafio, chegando ao risco desnecessário que coloca outras vidas em risco?

Esse é o propósito do livro “No ar rarefeito” (1997), de Jon Krakauer, mesmo autor do consagrado “Na natureza selvagem” – que se tornou o queridinho de muitos jovens após o filme homônimo de 2007, contando a história do jovem que resolve viver na natureza e morre de frio e fome no Alaska, dentro de um ônibus abandonado. Neste livro, Krakauer trata da mesma relação de fascínio do homem com a natureza, e de como a romantização da mesma pode levar a consequências tão estúpidas quando inexplicáveis. Krakauer narra a tragédia do Monte Everest (8.898 m.), ocorrida em 1996, quando um grupo de 37 alpinistas, dentre os quais ele estava como jornalista da revista de aventuras Outside, foi pego por uma tempestade ao subir a montanha mais alta do mundo. Oito deles morreram e foram deixados, até hoje, congelados no caminho de volta.

Turismo de extremo risco (sem spoiler)

Jon Krakauer, atualmente

Nos idos dos anos 1990, após sucessivas tentativas bem-sucedidas desde a primeira ascensão ao topo do mundo, pelo neozelandês Edmund Hillary e o nepalês Tenzing Norgay, o temor ao Everest já não era tão grande. Os primeiros brasileiros, inclusive, tinham chegado ao cume, os montanhistas Waldemar Niclevitz e Mozart Catão, em 1995. Portanto, os primeiros empresários do ramo do turismo, em parceria com montanhistas com experiências prévias no Everest, ou mesmo eles próprios criando suas próprias empresas, tomaram a iniciativa de levar amadores ao local mais alto da Terra. Sob algum teste físico e avaliação de adaptação à altitude, esta última já durante o trajeto, agentes e guias tiveram sucesso em conduzir turistas.

Contudo, os procedimentos rígidos de segurança, que garantiam os sucessos da ascensão nas últimas décadas – ainda que entremeados por número não negligenciável de acidentes e mortes por exaustão e frio – vinham sendo relaxados em função do desejo dos turistas em cumprir com o trajeto. Retornos, que deveriam ocorrer antes das 16h, para garantir luz do sol nas quatro a cinco horas de retorno (considerando o pôr do sol no verão, naquela latitude), vinham sendo atrasados. Casos de exaustão, negligenciados. Mesmo os moradores locais, homens mais adaptados que serviam como guias, sucumbiam à autoafirmação de mostrarem-se fortes perante a montanha. Tornava-se, inclusive, cada vez maior o número de montanhistas que pretendiam subir sem auxílio de oxigênio, sendo que um dos principais riscos da subida ao Everest é que, acima de 8 mil metros, o corpo humano degenera sua reposição celular muito rapidamente, dada a insuficiência de oxigênio natural.

Por isso, uma ascensão ocorrida em julho de 1996 seria o marco da tragédia anunciada: o dia em que, dado o alto número de montanhistas pouco aptos para a tarefa, um caso de má gestão dos procedimentos de segurança e de observação de condições físicas, antes severos, levaria à morte de quase toda uma expedição.

A tempestade imprevista (com spoilers)

Rob Hall

Rob Hall (35), norte-americano, e Scott Fischer (40), neozelandês, lideravam duas expedições turísticas ao Everest, acompanhados de um grupo de guias do povo sherpa, que habita a região. As empresas eram, respectivamente, a Adventure Consultantes e a Mountain Madness. Havia, entre os expedicionários, profissionais qualificados como a japonesa Yasuko Namba (47), que cumpria o circuito dos Sete Cumes – as montanhas mais altas dos sete continentes listados no montanhismo, América do Sul, o Aconcágua na Argentina (6.961 m.); Américas Central e do Norte, o McKinley nos Estados Unidos (6.194 m); Europa, o Elbrus na Rússia (4.741 m.); África, o Kilimanjaro na Tanzânia (5.885 km); Oceania, o Puncak Jaya em Papua Nova Guiné (4.884 m.); isoladamente a Austrália, Kosciuszko (2.228 m.); e Antártica, Vinson (4.892 m.). Já tinha subido todas, tendo ela deixado por último, propositalmente, o Everest. Contudo, no meio disso havia gente como o carteiro norte-americano Doug Hansen (46), que tinha juntado o dinheiro de uma vida para isso e tentava pela segunda vez.

O resultado foi um número excessivo de pessoas, que causou atraso no cumprimento de quase trinta ascensões (houve desistências no caminho e guias que tiveram de acompanhá-las), além de desequilíbrio no uso dos tubos oxigênio, já que alguns os demandaram demais, e não se pode subir com muita reserva, por conta do peso. Em geral, são 3 kg. para cada pessoa, o que serve como suplemento, mas não para garantir a respiração a 8 mil metros.

O que, nos tempos da montanha reservada ao alpinismo profissional, seria gerido com rigor, nos anos em que o lucro se tornou foi sendo banalizado. Era inevitável, já que o turismo vinha proporcionando crescimento econômico à própria região e tornando-se sedutor até para quem prestava os serviços locais. Também para o Governo nepalês, que cobrava taxas e via aquecer a economia, e para empresas de todos os países.

No dia 10 de maio de 1996, a descida após as 16h, com pouco oxigênio disponível, terminou em tragédia após a chegada de uma nevasca, seguida de múltiplas avalanches, que deixou os montanhistas perdidos.

Rob Hall, que mantinha comunicação por rádio com os parceiros que tinham retornado ou que já esperavam na base, narrou a morte de companheiros e a sua própria, enquanto tentava sobreviver, já no fim do segundo dia na montanha, tendo passado uma noite no Everest. Só conseguia falar, já sem o controle do próprio corpo e, portanto, condenado à morte. O carteiro Doug, conforme narrado pelo líder, tinha subido atrasado porque não quisera desistir por cansaço, já que dificilmente teria economias para tentar de novo. Assim, atrasou Rob, que tinha de ficar no cume até que subisse o último. Morreu ao seu lado. Yasuko Namba sucumbiu por falta de oxigênio suplementar, tendo, ainda assim, resistido até quase a base da montanha. Outros cinco não têm documentada a forma como morreram.

Caso heroico foi Beck Weathers (49), que sofreu por mal de altitude antes de chegar ao cume, mas foi pego pela tempestade porque não conseguira voltar, tendo perdido temporariamente o sentido da visão. Após a noite, com os membros e parte do rosto congelados, resistiu e desceu, tendo amputado dois braços e o nariz. Jon Krakauer, então com 42 anos, não correu riscos, por ter sido um dos primeiros a subir, e portanto ter baixado antes da tempestade. Porém, considera que sua presença como jornalista interferiu, possivelmente, nos riscos assumidos pelo restante da equipe, pois os líderes se esforçaram demasiadamente em cumprir com todas as ascensões diante de um representante da imprensa.

O risco dos outros

Beck Weathers, prestes a receber três amputações

Para descer alguns desses turistas, que, mesmo sobreviventes, não tinham condições de retornar do acampamento-base até fora do Himalaia, foram usados helicópteros. Foi a primeira vez em que se empregou este tipo de aeronave acima de 5 mil metros, o máximo seguro devido ao ar rarefeito, já que helicópteros, diferentemente de aviões, dependem de densidade do ar para se manterem estáveis. Pilotos e socorristas foram empregados numa missão em tempos de paz, para resgatar pessoas que não se acidentaram ou foram vítimas de intempéries inevitáveis. Os riscos do turismo no Everest se tornaram claros.

As consequências foram o retorno dos protocolos rígidos de ascensão ao cume, sendo exigidos exames e experiência prévia aos candidatos a subir ao Everest. Depois de Waldemar Niclevitz e Mozart Catão, os brasileiros Rodrigo Raineri e Vitor Negrete também subiram a montanha, respectivamente em 2005 e 2006, tendo este último morrido antes de retornar. Hoje, as expedições turísticas levam ao primeiro acampamento-base, a cerca de 5 mil metros, onde se pode avistar a montanha e tomar fotos. Algumas montanhas próximas podem ser acessadas por alpinistas menos experientes. O Everest, porém, segue restrito e cruel, sendo encontrados dezenas de corpos congelados pelo caminho, dentre eles alguns dos que morreram em 1996.



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