
Valiant Hearts e a sobrevivência à guerra
O universo dos games é pleno de jogos que retratam a Segunda Guerra Mundial, o que possivelmente começou com o fantasioso “Wolfenstein”, que fundou o tema no gênero tiro em primeira pessoa (FPS, sigla em inglês para first person shooting). Depois dele, o FPS foi dominado por jogos de Segunda Guerra durante os anos 1990 e início dos anos 2000, com as franquias “Medal of honor” e “Call of duty”, além de jogos de estratégia como “Commandos” e Hidden and dangerous”. Mais tarde, a Guerra do Vietnã pintou com “Line of sight” e, pouco depois, a franquia “Call of duty” se diversificou em todo tipo de guerra.
Entretanto, nunca a Primeira Guerra Mundial tinha sido competentemente retratada, a não ser por trechos pontuais de alguns jogos. Isso sempre se deu porque, com a estabilização dos jogos em 3D, concomitante com a chegada dos jogos de guerra, estes sempre demandaram a dinâmica em lateralidade e profundidade, o que só as missões de movimento das guerras após a Segunda Guerra Mundial conseguiam retratar.
A Grande Guerra, dos anos 1910, assim como as anteriores, constituíam-se do estabelecimento de bases fixas ou de grandes marchas. E, desta forma, um jogo passado na Primeira Guerra Mundial, onde os eventos mais interessantes se passaram em trincheiras, não proveria ao jogador a jogabilidade mais divertida, embora pudesse render boas histórias. Esse problema foi solucionado pela geração indie dos anos 2010, quando foi lançado “Valiant hearts: the Great War”: um jogo que incorpora o estilo plataforma dos anos 1990, acrescido de alguns elementos quebra-cabeça, para trazer às telas dos games o conflito que colocou a humanidade no século XX. Ele ganhou, em 2023, a sequência “Valiant hearts: coming home”.
O título foi desenvolvido de forma independente por programadores da Ubisoft Montpellier, divisão francesa da matriz canadense, e logo foi encampado e lançado pela empresa principal. Está em quase todas as plataformas, atualmente: PC, Microsoft, Sony e Nintendo.
Chamados às trincheiras
Da esq. à dir., Emile, Anne, Freddie e Karl
Trincheiras representaram quase toda a guerra
O jogo acompanha a saga do soldado francês Emile, um homem de meia-idade convocado para a frente de guerra, que é capturado pelos alemães e passa a trabalhar ajudando a produzir toda sorte de armamentos. Também há Karl, um soldado alemão que é casado com a filha de Emile e morava na França, mas foi deportado para a Alemanha e serve contra o exército defendido pelo sogro. Surgem, no transcorrer da história, um voluntário norte-americano chamado Freddie, que se alistou no Exército francês após a mulher ser morta num bombardeio, e Anne, uma veterinária belga que se alista como enfermeira.
Entre idas e vindas, os quatro ora se unem ora se afastam, cumprindo com missões de fuga, resgate e sobrevivência, em que o objetivo não é matar os inimigos, mas passar ileso por bombas, tiros, ataques com gás, metralhadoras de avião, tanques de guerra, enfim, toda a diversidade de armamentos nascidos daquele conflito. O objetivo é simples, levar Karl de volta para Marie, sua esposa e filha de Emile, e conseguir sobreviver. O restante é contado de acordo com a cronologia da própria guerra e seus eventos mais marcantes, entre eles a Batalha do Verdun, na fronteira da França com a Alemanha, que vitimou em torno de 3 milhões de soldados em nove meses de intensos combates.
Uso da inteligência
Várias chaves devem ser acionadas num estágio
Em “Valiant hearts”, portanto, o importante não é a precisão no tiro, e sim a capacidade de se esconder nos momentos certos, avançar no tempo correto, soltar granadas para derrubar obstáculos ou saltá-los sem ser percebido por um soldado à espreita. Muitas vezes, é necessário ir e voltar por um cenário, a fim de ativar diferentes mecanismos que o permitam, por exemplo, evitar que um tanque passe por uma ponte levando armamentos, ou impedir a decolagem de um zepelim repleto de explosivos. O objetivo é salvar soldados, muitas vezes de ambas as frentes, e não cumprir missões derrubando inimigos.
Num jogo de Primeira Guerra Mundial, isso é possível porque, a bem da verdade, todos foram vítimas de um conflito estúpido desencadeado pelas disputas por colônias na África e na Ásia. Tão estapafúrdio que foi iniciado por um assassinato motivado por um tema de interesse local, a independência da Sérvia em relação ao Império Austro-húngaro, que fez com que o rebelde Gravilo Princip atirasse contra o arquiduque Franz Ferdinand, o que foi usado de pretexto para que os países fossem declarando guerra um atrás do outro.
Em “Valiant hearts”, não impera o maniqueísmo dos jogos em que se mata alemães nos anos 1940, ou o discurso político daqueles em que os inimigos são os russos. Ali, não há o discurso fácil – ou seja, de fácil assimilação, mas moralmente adequado – de vilanização pura e simples nazismo, eximindo de dilemas a execução de seus soldados. Do mesmo modo, todos os países representam forças que, atualmente, estão do mesmo lado político, ocidental-liberal. O uso dos games como ferramenta geopolítica, muito comum em FPSs, não se faz necessário.
Estética lateral: perfeita pro cenário
Sensação é mais clara sem profundidade
O jogo feito em estilo plataforma permite que a Primeira Guerra Mundial seja retratada como foi: imensos corredores de soldados empilhados, túneis subterrâneos, pontes, linhas de frente que correspondiam a corredores abertos no meio de cidades abandonadas. Portanto, com a tecnologia e os recursos de detalhes e organicidade existentes hoje, num plataforma muito mais avançado do que “Mario” e “Sonic”, a associação com o elemento quebra-cabeças abre espaço para outro aspecto daquele conflito: a estratégia tal e qual um tabuleiro de xadrez.
Estática, a Primeira Guerra tinha sua batalha decidida em dois elementos: inovações tecnológicas e estratégias de ocupação do espaço entre duas linhas de trincheiras. Assim, movimentando o avatar da personagem para ativer switches estratégicos e permitir o avanço ou a fuga de companheiros, o jogador entende a dinâmica daquela guerra, muito diferente das tomadas cheias de ação da Segunda Guerra Mundial. Na primeira, às vezes passava-se meses entrincheirado, esperando pela oportunidade do tiro certo.
O traço do jogo, por sua vez, é feito num estilo cartoon, mas quase sketch. As linhas são grossas e rabiscadas, às vezes sobrepondo cinco camadas gráficas ou mais. Isso para dar profundidade e detalhes ao cenário, ainda que o jogador só se mova lateralmente ou, quando muito, na profundidade entre a segunda e a terceira camadas. A primeira é de apêndices do cenário, o que permite a experiência imersiva de movimentar o avatar dentro da guerra, e não colado na tela. O drama e a morbidez da guerra são transmitidos por meio da gama de cores entre as camadas, mais reluzentes e vivas nas personagens, mais mortas e tendendo à sépia no plano de fundo.
Pioneirismo avivou o cenário
Salvar vidas é mais importante
Embora a Primeira Guerra Mundial tenha, por muitos anos, ficado distante das telas dos games, a chegada de “Valiant hearts”, que resultou num segundo jogo específico sobre o retorno de Emile, Karl, Freddie e Anne para casa, desdobrou-se em outros jogos que trazem à tona a Grande Guerra dos anos 1910. O principal deles é “Battlefield 1”, de 2016, que já busca incorporar o cenário ao formato FPS. Referência, porém, ainda é o carismático jogo indie de 2014, de baixo custo e que demanda pouco tempo do jogador: em torno de três horas de gameplay.