
Orhan Pamuk, Neve e um sofrimento oriental
Se há uma situação encarada como problema no ocidente, embora para os mais soberanistas seja uma questão particular a cada cultura, são as liberdades individuais e o direito das mulheres no oriente médio. Isso vale para os países árabes, mais a Turquia e o Irã, que têm etnias diferentes da árabe, mas são impactadas culturalmente pelo islamismo e pela institucionalidade predominante na cultura que atravessa o Magreb africano e preenche o Levante e a Arábia, espalhando suas falanges até parte do sudeste asiático.
A Turquia, nesse entremeio, é um país dividido. Seu principal centro, Istambul, é europeu. Ancara, a capital, fica a meio caminho entre a metrópole do estreito de Bósforo e o interior do país. O leste turco, pouco após a Capadócia, é um ermo longe dos negócios e do turismo, e cercado pelo fundamentalismo islâmico dos vizinhos. Por isso, esse país a meio trajeto entre o ocidente e o oriente vive uma constante crise de identidade.
Crise essa que nasceu do fim do Império Turco Otomano, após a Primeira Guerra Mundial, em que o país abdicou das pretensões de ser o Grande Califado do islã, nalgo parecido com o que se passou com o Japão e o xintoísmo, com o fim das aspirações do imperador a herdeiro da deusa Amaterasu. Nesse vácuo, o líder nacionalista e laico Mustafá Kemal Atatürk fundou a atual Turquia, num fenômeno similar ao do getulismo no Brasil.
Resignação do califa Abdul II, no fim do Império Otomano
Atatürk, introdutor do Estado laico na Turquia
É esse o cenário em que transcorre o romance “Neve” (2002), de Orhan Pamuk, escritor vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2006, consagrado por obras como esta e Meu Nome é Vermelho, sempre debatedoras das contradições da Turquia moderna. No livro em questão, o autor discute os temas do fundamentalismo islâmico e dos problemas da mulher no distante leste turco. Também, do quanto não fecha questão a simples imposição de valores ocidentais para libertação do povo do oriente médio, ainda que se perceba problemas internos em seus países.
O poeta amalgamado na neve (sem spoilers)
Região que inspirou Kars, cidade ficcional de "Neve"
O livro conta a história de um poeta cujo nome é o acrônimo Ka, iniciais de Kerim Alakusoglu. Ele fica anos autoexilado na Alemanha e, um belo dia, retorna à sua cidade natal, no extremo leste da Turquia. Ele é chamada Kars, o que em turco significa neve. Seu nome e o da cidade, portanto, praticamente coincidem num mesmo significado. Isso é abastecido pelo contexto da história, pois, quando ele chega à cidade, uma nevasca impede a entrada e a saída das pessoas. Ele, portanto, têm de passar dias numa Kars ilhada pela natureza, e conviver como as diferenças entre si, um poeta moderno e europeizado, e os seus amigos do passado, muçulmanos nacionalistas e/ou radicais, alguns em cargos de poder ou ricos empresários.
Um fato, porém, está parando a cidade. Uma série de meninas muçulmanas está se suicidando, deixando as famílias da cidade em polvorosa. Concomitantemente, um grupo de fundamentalistas vem crescendo em seu poder, cujo comandante é Lacivert. De outro lado, o Partido Islâmico da Prosperidade se apresenta como temente a deus, mas sobretudo nacionalista e defensor de uma estrutura de Estado distante dos europeus. Seu líder é Muhtar, ex-marido de Ípek, uma mulher que namorou Ka na juventude.
Ka percebe que os suicídios das meninas tem menos a ver com a opressão islâmica, o que ele cogita a princípio, do que com os conflitos da modernização que ameaça Kars. Isso ele aprende de Ípek, com quem se reencontra porque ela é filha do dono do hotel, Turgut Bei. Num dado momento, o casal do passado volta se envolver. Nesse ínterim, tocado profundamente pelo ressurgimento de um amor e pelos conflitos ideológicos locais, ele recupera o melhor de sua inspiração e concebe o poema construtivista Snow, que dá nome ao livro.
Nele, o literato desenha um floco de neve e distribui, em suas pontas, palavras-chave que relacionam, entre si, conceitos islâmicos e nacionalistas diferentes, além de sensações humanas diferentes que implicam ou decorrem das contradições experimentadas em Kars, marcadoras da identidade popular turca. O povo preso pela neve, estagnado a meio caminho entre o islã e o nacionalismo, porém longe da prosperidade prometida pelas instituições e negada pela Europa. Sua intelectualidade brilha nesses dias, mas começa a despertar incômodo nos diferentes grupos de Kars, pois uns o consideram intemente a Deus, outros dizem que é europeu demais, e uns veem que eles está ocidentalizando as mulheres, por meio do comportamento com Ípek.
O vazio que conduz à morte (com spoilers)
Poema de Ka termina por causar-lhe problemas
Ka começa a viver dias de encurralamento, sem exatamente saber quem o está perseguindo. Enquanto meninas continuam a se matar, ele sofre um atentado a tiros quando está por se apresentar num festival de teatro. É chamado a se comunicar com os terroristas numa torre de rádio sitiada, a fim de se retratar na mídia quanto aos valores europeizantes e laicizantes de seu poema, o qual torna-se de conhecimento de todos por um vazamento do qual não temos conhecimento do responsável, e não teremos até o fim do livro.
Todo tipo de infortúnio se abate sobre Ka. Os nacionalistas, por sua vez, querem que o poeta envie uma carta com os anseios nacionais turcos para uma importante revista de cultura alemã, à qual sabem que Ka tem acesso. O livro, no entanto, mantém ambíguas quais foram as atitudes tomadas pelo protagonista diante das pressões dos homens turcos, representantes do nacionalismo e do fundamentalismo islâmico, ou do amor por Ípek, símbolo dos valores europeus da mulher independente e do amor escolhido.
Nesse meio tempo, durante toda a experiência com o livro, o leitor percebe que a história é narrada por um terceiro que conhece o poeta, mas fala dele num passado que pressupõe sua morte durante a narrativa. Entretanto, quando a neve baixa, ele encerra sua passagem por Kars. E aparentemente, inclusive, põe fim ao seu caso com Ípek, magoando uma mulher de criação tradicional turca. Retorna à Alemanha. O narrador faz-se personagem nas páginas finais, investigando a casa vazia de um Ka recém assassinado, sem que saibamos por quais das forças com que ele interagiu durante seus dias na Turquia.
Diante de suas escolhas ambíguas e misteriosas, cujos detalhes são fornecidos parcimoniosamente, cabe ao leitor avaliar sobre quem o matou: se os fundamentalistas islâmicos, se os nacionalistas turcos, se alguém em nome de uma Ípek sofrida por seu abandono. O mistério do suicídio das meninas turcas, que a princípio parecia o carro chefe do romance, mostra-se apenas um elemento surpreendente de ambientação, para percepção da gravidade dos dilemas da Turquia profunda. Eles ocasionaram a morte de Ka devido ao incômodo por ele causado aos cidadãos de Kars, simbolizado pelos islâmicos, pelos nacionalistas e pelas mulheres.
Não se sabe exatamente quem o matou. Somente que os motivos estavam entre os equilibrantes e dialogantes fatores do poema construtivista que ele escreveu em sua cidade natal.
O mal-estar dos povos periféricos
Notações de Pamuk para escrever o livro
Pamuk em seu escritório
“Neve” é uma peça fundamental para se discutir o dilema da ocidentalização. Se, de um lado, o ocidente avançou de forma sólida em questões humanitárias, sendo compreensível seu esforço por expandir e garantir suas conquistas o máximo possível, por outro é indefinível o quanto esse espalhamento conflita com o conforto psíquico das culturas distantes. Enquanto algumas nações, como Irã, China e Coreia do Norte se fecham às influências externas, inclusive com medidas autoritárias, outras se colocam como meio-termo, e são nessas que os povos mais sofrem.
Pode-se dizer até que o Brasil é uma delas, tal como o Japão ou Israel. No caso brasileiro, um país de comportamento religioso devocional orientou-se no protestantismo neopentecostal, rejeitando suas raízes católicas, como resposta desordenada ao atropelo pelo neoliberalismo. No caso japonês, a aculturação absoluta após a derrota na Segunda Guerra Mundial, assim como a resignação do imperador quanto ao seu direito divino, causou problemas de autoaceitação e, como em Kars, suicídio. Em Israel, um não-lugar causado por uma fundação confusa, atualmente, resulta em ódio racial e guerra com os Palestinos.
Ainda hoje, não se sabe o caminho do dilema entre o progresso material e institucional do ocidente, que com muito pode contribuir, e a soberania do sul global e do oriente, que devem ser garantidos, sob o risco do pagamento de um preço alto para todos os povos. Dois fatos exemplares, quanto a isso, agora em paralelo com os nacionalistas e fundamentalistas de “Neve”, são as guerras nacionalista da Rússia e fundamentalista do Hamas.