Shaman, André Matos e uma trajetória tristemente confusa

O ano de 1999 foi triste para os fãs do heavy metal brasileiro, em virtude da ruptura da banda Angra, que naquela década vinha sendo, ao lado do Sepultura, talvez uma das principais estrelas ascendentes de toda a música brasileira. Por divergências estéticas e administrativas, três dos cinco músicos da banda deixaram a formação: o vocalista André Matos, o baixista Luís Mariutti e o baterista Ricardo Confessori. Ficaram os guitarristas Kiko Loureiro e Rafael Bittencourt, além do produtor, Antônio Pirani, e eles conduziriam uma nova formação, que terminaria por ser tão ou mais exitosa que a primeira.

A maior ascensão em nossa história

Fairy Tale foi sucesso meteórico com "Ritual" (2002)

Banda manteve-se consistente com "Reason" (2005), Abaixo, faixa título

Contudo, o tema aqui é o desdobramento da cisão do Angra, em que André, Luís e Ricardo orientaram-se mais às raízes do heavy metal que ao som progressivo e experimental do Angra, fundando o Shaman. Talvez, o Shaman tenha sido a banda de brilho mais intenso do rock brasileiro, superior tanto a Angra e Sepultura quanto a todo o “meio-rock” brasileiro dos anos 1980/90. Isso porque, num período entre um e dois anos, a banda chegou a estrelar trilha sonora de novela da Rede Globo, “O beijo do vampiro”, como canção tema do protagonista da história, atingindo a fãs de fora do gênero.

Também porque, depois, ainda lançou um dos primeiros grandes DVDs da música nacional, o RituaLive (2003), gravado pela Universal Music Pictures, a maior do mundo para vídeos musicais. Teve, com sua principal música, Fairy Tale – a que estava na novela – lugar na coletânea Love Metal, da gravadora Som Livre, a principal do Brasil. No principal canal especializado em música e entretenimento do país, a MTV, a banda foi estrela de vários programas, André Matos namorou uma de suas principais apresentadoras, e seus músicos eram destaque de um dos programas mais populares, o torneio de futebol society “Rockgol”.

Se fosse possível quantificar em números o sucesso de Shaman entre 2002, ano do lançamento do álbum “Ritual”, até o fim de 2006, quando a banda se dissolveu, possivelmente chegaríamos a números de um Iron Maiden. No entanto, ao fim da turnê do consistente “Reason” (2025), segundo de seus álbuns e quase à altura do primeiro – este inatingível porque da ordem da genialidade – novas divisões internas fizeram com que a banda praticamente se encerrasse.

Competência criativa, dificuldades comerciais

Majestosidade de "Time to be free" (2007) não teve suporte comercial

"I Will Return", de Mentalize (2009), é simples e contagiante, mas foi mal divulgada

O nome ficou com Confessori, pivô da separação por questões puramente temperamentais, mas que tinha o registro da marca, e conduziu uma formação competente, mas tímida e com pouco suporte da indústria fonográfica.

André Matos seguiu carreira solo, com Luís Mariutti e seu irmão, Hugo Mariutti, o guitarrista encontrado para o Shaman no lugar de Loureiro e Bittencourt, integrando nova formação. A ideia de concentrarem-se em torno da figura de Matos, e não de uma nova banda, pode ter ajudado seus membros a pagar um preço alto. Com um mercado desacostumado a grandes carreiras solo em heavy metal, algo que os próprios fãs do gênero reservam somente a lendas fundadoras como Ozzy Osbourne e Ronnie Janes Dio – nem Bruce Dickinson, do Iron Maiden, emplacou carreira solo – André Matos não teve a atenção devida no excelente “Time to be free” (2007), superior a “Reason”, nem no mais modesto, porém carismático “Mentalize” (2009), que leva uma das canções clássicas do vocalista, “I will return”.

Se André Matos herdava o espírito do velho Shaman, mantendo na carreira solo as características fundamentais da banda, já não tinha o suporte midiático, e qualidade na indústria cultural não tem reconhecimento se não acompanhada pelo marketing. “When the light turns out” (2013), último álbum de Matos, não manteve a qualidade que o vocalista expressava em quase trinta desde sua banda inicial, Viper, com a qual lançou “Knights of Destruction” (1987) e “Theater of Fate” (1989), meio-tempo em que ainda publicou “Angels Cry” (1993) “Holy Land” (1996) e “Fireworks (1998) com o Angra, além de participação emblemática no projeto “Avantasia – the metal opera” volumes I (1999) e II (2002).

Formação de Confessori ficou patinando

Altos e baixos abafaram canções como a delicada "Finally Home", de "Origins" (2010)

Confessori juntou-se a Thiago Bianchi, vocal, Leo Mancini, guitarra, Fernando Quesada, baixo e Fabrizio di Sarno, teclado. Lançou “Immortal”, um álbum não mais que simpático, com algumas extravagâncias como um DVD gravado num festival de anime, com exibições de nunchaku no meio do show. Depois, veio “Origins” (2010), com o belo e emocionante clipe para a canção “Finally Home”, mas apagado musicalmente. Uma tentativa de gravar um DVD com orquestra na Hungria foi malsucedida, resultando num simples disco anexo a este álbum. Depois disso, a banda também se dissolveu.

Fim dramático da turnê de volta

"Brand New Me", de "Rescue" (2021): demonstração de poder criativo pós A. Matos

Retornaria em 2018, quando os membros da formação original se reuniram para uma turnê nacional muito bem-sucedida e programavam o lançamento de um álbum inédito, nos moldes de “Ritual” e “Reason”, mas foram surpreendidos pela morde de André Matos em junho de 2019, vitimado por um infarto. Ainda assim, os irmãos Mariutti, mais Ricardo Confessori e o tecladista Fábio Ribeiro, reuniram-se a Alírio Netto, competente vocalista que há muito vinha ciscando uma vaga numa das poucas grandes bandas do Brasil. O resultado foi o ótimo álbum “Rescue” (2021) e a emocionante canção “Brand new me”. O projeto teve divulgação limitada pela pandemia, e interrompida por nova ruptura com um desequilibrado Confessori, que, desta vez, envolveu-se em polêmica por declarações homofóbicas em redes sociais.

O Shaman poderia ter sido a maior banda da história do país, mais que Angra e Sepultura, e possivelmente teria alçado voo nos anos seguintes a “Ritual” e “Reason”. Contudo, a má gestão dos próprios recursos humanos, um mal experimentado pela maioria das cenas do rock mundial, foi especialmente castigante com os músicos de Angra e Shaman. Talvez porque a banda inicial, lá atrás, tenha nascido não muito espontaneamente, como uma reunião de bons músicos que pouco ou nada se conheciam, promovida pela extinta revista Rock Brigade, do empresário Antônio Pirani.

Por que as bandas rompem tanto?

Pela metade da trajetória do Queen, Freddie e a banda já não se entendiam

Progressivo de Kalafina ainda tem futuro incerto. Retorno parece tão somente profissional

Sem o poder financeiro de indústrias fonográficas como a britânica e a norte-americana, hoje a japonesa, é difícil motivar músicos de personalidades muito distintas e desestimulados pela exaustão da convivência. Gravadoras como a norte-americana Roadrunner, a britânica EMI, ou a japonesa Sacra Music (divisão musical da Sony), seguraram bandas cheias de desafetos como um Kiss em que a dado momento os membros mal se conheciam; o Queen de um temperamental Freddie Mercury, que não era suportado pelo líder Brian May; o Pink Floyd e o ódio de partida entre David Gilmour e Roger Waters; e hoje os japoneses o fazem com o rock progressivo de Kalafina e a pouca simpatia entre a vocalista Wakana Ohtaki de um lado, e do outro as também cantoras Keiko Kubota e Hikaru Masai, mais a maestrina Yuki Kajiura. A banda recém retornou de hiato aberto em 2019 e faz turnê asiática, planejando o primeiro álbum desde “Far on the water” (2015).

A concentração de investimentos para o heavy metal nacional, muito mais que os problemas individuais dos músicos, induzem as rupturas de formação em projetos que dão certo musicalmente, mas não tanto comercialmente, e o que afeta o bolso e também a realização dos profissionais, fazendo com que a desavença passe por cima da esperança no projeto. Recentemente, a banda de trash metal Nervosa, esperança do gênero nos anos 2010, desdobrou-se numa versão internacional da banda, consequência da saída de três musicistas para uma nova, intitulada Crypta, que também já teve a formação quebrada.

E assim vai… Com talento e sem dinheiro.



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