Makoto Shinkai e a divindade climática

Será que nossas energias realmente influenciam o universo? Seguramente, o misticismo orientalista trazido pelas doutrinas coach espalhadas pelo Brasil desde o livro “O segredo” (2006), hoje propagadas para todos os desesperados pelas mazelas do capitalismo, não passa de pilantragem, ao menos na sua forma direta. Entretanto, a capacidade de modificar a realidade a partir dos sentimentos não é negada do ponto de vista religioso, no cristianismo, se considerada a partir do poder da fé.

No Japão, assim como em todas as culturas que descendem do “tao”, doutrina chinesa sintetizada pelo filósofo Laozi, que acreditava no poder do equilíbrio entre as energias polares de yin e yang, a interferência humana nos poderes naturais e supranaturais se dá por essa via. Lá denominada “dô”, ou, tanto e chinês quanto em japonês, traduzível como “caminho”, a doutrina preza pelo caminho como equilíbrio verdadeiro entre os dois polos, que determinam homem e mulher, sol e lua, amor e indiferença, doce e salgado, todo tipo de oposições diametrais que permeiam a realidade, sendo seus intermediários equilíbrios de diferentes balanços. O balanço verdadeiro, sempre almejado, é o “caminho”, ou o “tao” e o “dô”.

Nesse sentido, os filmes do cineasta japonês Makoto Shinkai sempre prezam pelo misticismo nipônico xintoísta/zen-budista contemporâneo, determinado pelo dô e por divindades animistas ancestrais, que creem não só no equilíbrio, mas em espíritos e divindades naturais que existem em confluência com a natureza visível e o humano. Diferentemente do xintoísmo tradicional, porém, não mais se hierarquiza em torno do imperador e dos xogunatos, que levaram o país a consequências trágicas para os vizinhos e ele próprio, durante a Segunda Guerra Mundial. Diferentemente de alemães e italianos, japoneses se consideram mais vítimas que algozes naquela guerra, visto que nasceram sob domínio imperial e padeceram igualmente dele, diferentemente dos dois povos anteriores, organizados voluntariamente em torno do fascismo.

Como consequência desse misticismo irreligioso dos atuais japoneses, obras como “Kimi no na wa” (2016) e Suzume (2022) sempre tratam do amor entre homens e mulheres como vetor do equilíbrio natural e da ordenação dos fatos da vida, sendo aquele primeiro que espraia uma das principais angústias de um povo fortemente atingido por intempéries naturais. Em “Tenki no ko” (2019), a história se dá entre um menino do interior e uma divindade do clima.

A mulher como sagrado (sem spoiler)

Amaterasu, a deusa feminina criadora do Japão

Muito se fala, nos cultos neopaganistas, na mulher como sagrado pela fertilidade e sexualidade. Os japoneses, por outro lado, trabalham o mesmo conceito no sentido da essência dos sentimentos. Todos os filmes de Shinkai têm na personagem feminina o protagonismo – curiosamente, caso igual ao de seu quase antecessor espiritual e artístico, Hayao Miyasaki, de “A viagem de Chihiro” (2001) e “O menino e a garça” (2024) – mas em aspecto divino, sendo o papel masculino o lugar do cuidado, ao contrário do que ocorre na cultura ocidental.

Na animação de 2019, aqui nomeada como “O tempo com você”, Shinkai conta a história de Hodaka, um garoto do interior que foge para Tokyo e, sem ter para onde ir e onde ficar, é ajudado por um jornalista, Suga, dono de uma revista sobre misticismo. Começa a trabalhar e morar com ele, depois de, ainda vagando pela rua, receber uma breve ajuda de uma garçonete chamada Hina. Em sua primeira reportagem, começa a investigar o fenômeno das garotas do sol, que têm a capacidade de controlar o clima. Entre idas e vindas, descobre que a menina que o ajudou é uma delas, com poderes sobrenaturais sobre o tempo.

Ele a reencontra quando a defende de um grupo de assediadores na rua, dos quais ele vai apanhar ao interromper o crime, e ela reage manipulando o tempo e criando uma tempestade. De seu sentimento tempestuoso nasce o desequilíbrio ambiental, e os homens maus fogem, sem perceber que o problema emanou diretamente dela, mas escapando da chuva. Hodaka, que está estudando o tema, descobre que se encontrou com uma fonte para sua reportagem, e inicia com ela uma amizade que se tornará amor.

O sofrimento de Hina (com spoilers)

Em "Tenki no ko", uma divindade feminina representa a angústia climática

Toda história japonesa tem seu lastro emocional na tristeza e na angústia, não importa o quão alegre ela pretenda ser. O agridoce faz parte da catarse japonesa, e não é diferente em “Tenki no ko”. Quando o envolvimento entre Hodaka e Hina se torna mais e mais profundo, o Estado, por meio do Conselho Tutelar, descobre que Hodaka está hospedado por Suga, imputando criminalmente o jornalista e recolhendo o garoto. Entretanto, o menino e Hina, a essa altura, já passam os dias juntos e trabalham prevendo o tempo para eventos ao ar livre, dos quais os organizadores não sabem que Hina vai conjurar o sol necessário para os que pagam a eles, e a chuva aos que não, de forma que acreditem e paguem da próxima vez.

Estão em desequilíbrio, afinal, ao desvirtuar a determinação sagrada da menina que é a deusa do clima. Por isso, assim como pelo desatino de Hodaka em deixar a casa de sua família, o garoto é recolhido pelo Estado e separado de Hina. Ainda assim, foge de onde está apreendido, com a ajuda de um irresponsável voluntarismo de Suga, e busca a garota passando pelo portal xintoísta da cidade. Lá, magicamente rompe o estrato da realidade e passa ao plano da divindade Hina, que está entre as nuvens rezando por ele e pelo planeta.

Diante do desequilíbrio da separação entre Hina e seu amor verdadeiro, a Terra é tomada por catástrofes naturais e ocorrem tempestades e nevascas ininterruptas, ao passo que a menina desaparece etereamente, tornando-se transparente até sumir. Agora, o sofrimento é causado a Hodaka, que não tem mais razões para lutar contra a apreensão pelo Estado, tampouco se manter arredio à família e ao provincianismo de sua cidade de interior. Por abandono do lar – o que, no Japão, é crime – ele é sentenciado a três anos de prisão, comutados em liberdade condicional e restrição de ida e vinda, vivendo entre a escola e a casa.

Com o passar do tempo, o cumprimento da sentença e o alcance da maioridade, o garoto retorna a Tokyo, no futuro da história principal, para o encerramento da história. Descobre, com Suga, que Hina ainda vaga pelo Japão, após as catástrofes de três anos atrás, e peregrina pelo país em busca da amada. Encontra-a diante de uma enseada, onde antes havia uma cidade, agora submersa pelos resultados das tormentas que emanaram do sofrimento da menina deusa. Quando eles se veem, Hina assegura ao amado de que tudo ficará bem, deixando em aberto o futuro dos dois. Não sabemos o ponto de harmonia em que ambos permitirão que tudo fique bem, juntos ou não, mas em prol do mundo e não deles mesmos.

Subentende-se que Hina sabe, e dirá a Hodaka.

A catástrofe como fator do desequilíbrio

A tempestade, consequência do abandono da família: o individualismo

O olhar japonês para a guerra e para o desastre natural passa, em grande parte, pela desarmonia no âmbito introspectivo. Se os chineses relativizaram o sobrenatural em função do materialismo histórico marxista da Revolução Chinesa, e os coreanos se tornaram absolutamente ocidentalizados e em sua maioria cristãos protestantes, o Japão ficou no meio do caminho. Em contínuo com o passado, seus cidadãos mantiveram-se um povo místico, diferentemente de religioso. Se a antiga religião hierarquizada japonesa, que partia do imperador como herdeiro da deusa criadora Amaterasu, entrou em decadência em função da derrota na Segunda Guerra Mundial e resignação do direito à divindade por parte do chefe de Estado, o aspecto místico da sociedade japonesa tomou formas mais universalizantes.

Portanto, em obras como as de Shinkai, o universo, com seus múltiplos planos, criaturas místicas, deuses e espíritos que correspondem à natureza, ao humano e aos seus sentimentos, responde ao caráter e às decisões humanas. As sagas de heroísmo são sempre de dentro para fora, de um encontro consigo mesmo que salva o mundo e os humanos.

Yokais, espíritos que reproduzem entes e sentimentos

Por isso, a questão do desequilíbrio como responsabilidade humana, diferentemente de como é tratado no ocidente, é transcendentalizado pela cultura japonesa, hoje reconhecidamente uma das mais pacifistas e ambientalistas do mundo. Se não a mais. Isso em oposição absoluta ao que foram até as bombas atômicas, consideradas até internamente como o marco fundamental da existência de uma cultura de bem-estar, segurança, irreligiosidade no sentido institucional, mas misticismo com determinações práticas no sentido existencial. A própria oposição entre o Japão tradicional e o contemporâneo, um meio de caminho entre passado e presente, pode ser aplicada ao conceito transcendental japonês de “caminho”.



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