
Bogart, noir, a luz e a sombra
Um gênero cinematográfico quase desaparecido, mas de um charme inigualável e que praticamente monopolizou hollywood nos anos 1940, é o chamado film noir. Que herda do francês o nome por conta do romance noir, tipo de publicação folhetim muito popular na França durante os anos 1910, com autores como Xavier de Montepin, autor do não-clássico “Paris-Lyon-Mediterrâneo”. Não-clássico é expressão aqui cunhada para destacar o quanto o gênero, ao contrário do mistério britânico de Arthur Conan Doyle ou americano de Agatha Christie, não vingou, deixando como legado um gênero de cinema muito melhor que seu antecessor.
O claro e o escuro
Humphrey Bogart iluminado no rosto, a luz atrás da cortina, sombras ao redor
O cinema noir, essencialmente norte-americano, era feito de filmes de investigação simples, sem dramas elaborados, que partiam de uma denúncia criminal, passavam por um detetive de sobretudo longo e chapéu de feltro, envolvia uma ou mais garotas perdidamente apaixonadas tanto pelo detetive quando pelo criminoso, e terminava em muitos tiros que jamais atingiam o protagonista. A receita, interpretada por atores como Humphrey Bogart, James Stewart e Cary Grant, seria superada nos anos 1950 pelo suspense psicológico de Alfred Hitchcock. Este incorporaria Stewart e Grant como seus principais atores, ao passo que Bogart já não vivia seu auge, devido a problemas de saúde. Morreria de câncer em 1957, após uma vida marcada por boemia, cigarro, bebida e mulheres.
Bogart era a encarnação do noir. Embora seu principal filme, o classicíssimo “Casablanca” (1943), tenha sido um drama de guerra e espionagem mais sofisticado e de contracenação entre ele e a consagrada Ingrid Bergman, em papel mais ativo que as mocinhas do noir, o boêmio fez carreira nos policiais baratos da hollywood quarentista. Ao fim, o legado do noir se vê tanto em Bogart como símbolo do charme de um cinema americano perdido, quanto pelo legado que deixou em outras escolas como a argentina e a nórdica.
Luzes, sombras, histórias e emoções
Roteiros prontos e linguagem imersiva. O ambiente vem antes da história
A beleza do noir se dá de diversas formas, mas uma fundamental é a que lhe batiza: nos tempos do cinema em preto e branco, o uso do contraste entre claro e escuro, enfatizando a luz na personagem e as sombras naquilo que a rodeia, marcou a história do filme policial. A ideia de que o escuro circunda o investigador, como forma sígnica da sua relação com o desconhecido e da busca pela elucidação, potencializou a noção de suspense. E, assim, estabeleceu uma relação até então inédita com o espectador, num tempo em que o cinema deixava a onda de musicais, terrores de caricatos vampiros e lobisomens repletos de caretas, e romances água-com-açúcar. Ele ainda não dispunha de recurso em cores e, muito menos, de efeitos especiais, e, portanto, o claro e o escuro foram a primeira forma de fazer cinema de suspense.
Neste sentido, “À beira do abismo” (1946) é um excelente exemplar do gênero, dirigido por Howard Hawks e roteirizado pelo lendário William Faukner, autor do clássico romance “O som e a fúria” (1929). Nele, o detetive particular Phillip Marlowe (Humprey Bogart) investiga, em tempo real, uma série de assassinatos ligados às herdeiras de um importante general que ficou paraplégico durante a Segunda Guerra Mundial. A mais nova, Vivian (Lauren Becall), cai de amores por Marlowe, que atrai a atenção de todas as quatro ou cinco mulheres que encontra durante a história. Uma surrealidade, típica do cinema americano do meio de século, que retratava o arquetípico homem de sucesso não somente como o homem rico, o que Marlowe não é, mas como aquele que tem sucesso no que faz e é bom com um revólver.
Marlowe descobre que os crimes são ligados às chantagens de um grupo de credores das irmãs, que contraíram dívidas durante a estada do pai na guerra, e agora deve salvá-las porque, como elas não têm dinheiro para pagá-lo, eles pretendem acessar as economias que restam com a família nos cofres do pai.
Fim de papo, esta é a história, e o restante é a estética majestosa do film noir. Cenas se entrecortam com rapidez, embora as cortes de câmera sejam poucos, dada a pouca quantidade de câmeras dos anos 1940, todas do tamanho de um carro. A trilha sonora, em tom sombrio e dramático, incorporando elementos do romantismo do século XIX, surge de forma teatral em todas as transições de cena, marcadas pelo claro em Bogart e escuro ao redor. A não ser nos ambientes já demarcados para as cenas românticas, as quais o espectador intuitivamente já espera em razão da diferente iluminação.
Bogart interpreta a mesma personagem de sempre, o boêmio americano de voz azeda e cigarro ao canto da boca, um padrão que incorpora certa malandragem. A mulher, a futilidade em pessoa, perita em manipulação, mas frágil em relação ao protagonista. O inimigo à espreita, escuro, fugindo pelas ruas e perseguido pelo herói. O tiro vindo do oculto, como um ponto de luz que vem do escuro, até que a cena seja iluminada quando o herói descobre o criminoso.
Em “À beira do abismo”, o conspirador-mor é a própria irmã de Vivian, em conluio com os credores que tocam um cassino em Los Angeles, e todos querem acessar as economias do general.
Simplicidade deixou sementes
Benjamín Espósito (Ricardo Darín) é o típico investigador noir em "O Segredo de Seus Olhos"
Não que o cinema noir tenha sido inovador em matéria de roteiro, ainda que incorporasse clássicos roteiristas como Faulkner, mas sua capacidade de repetir as mesmas histórias, personagens e cenas, mas seduzir por uma ambientação viciante, transformou-o num gênero cultuado por gerações e até hoje admirado por muitos cinéfilos. Muitos colecionam filmes e memorizam quais são quais, ainda que todos se pareçam.
E, atingindo grandes diretores, o noir ainda inspira novos clássicos, como o argentino “O Segredo de Seus Olhos” (2010), de Juan José Campanela, vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional e amplamente considerado um dos melhores do gênero suspense, em todos os tempos. Ou as modernas séries “Borderliner” (2017), da Noruega, e Ófærd/Trapped (2015), da Islândia. Nos Estados Unidos, destacam-se filme “O colecionador de ossos” (1998), com Denzel Washington e Angelina Jolie, e o game de mundo aberto L.A. Noire (2011).
O claro e o escuro em cena com Andri Ólafsson (Oláfur Darei Ólafsson), de Ófærd/Trapped
Noir chega aos games em L.A. Noire. A luz está no rosto do herói e no antagonista. Sombras ao redor
Luz e sombras na heroína Amelia Donaghy (Angelina Jolie), de "O Colecionador de Ossos".
Algumas mudanças se impuseram com a atualização técnica, moral e social dos diferentes tempos. O cigarro diminuiu, as mulheres se tornaram ativas e os filmes passaram a ser coloridos. Embora as cores tenham reduzido a capacidade teatral do efeito de luz e sombra, ainda assim ele é um recurso comum entre filmes e séries de suspense. Entretanto, o ar soturno e decadente do herói praticamente deixou de existir nas produções americanas, dando lugar a carrões e à ostentação dos profissionais de sucesso que protagonizam o mistério no estilo C.S.I.