Maior de seu esporte, herói de seu povo

Ayrton Senna, o maior piloto de todos os tempos, viveu e morreu lutando contra o imperialismo. A bem da verdade, luta até hoje. Quase trinta anos depois de sua morte, o legado de Senna tem de conviver com recordes artificialmente construídos por pilotos quaisquer a bordo de máquinas infalíveis. Um esporte em franca decadência que carece há décadas de heróis. Senna foi mais, Senna foi um super-herói. Sem poderes mágicos, a não ser seu talento e trabalho.

Recém-chegado à categoria, ele, que a vida toda fora menino rico no Brasil, ali descobriu que seria um cabra marcado no meio de representantes de um dos mais poderosos segmentos do imperialismo no mundo: a indústria automotiva. Nesse meio, ninguém representava melhor os interesses do capitalismo que Alain Prost, o protegido da cartolagem e de grandes marcas como Porsche, Phillip Morris, Ferrari, Elf e Renault. O mundo da Fórmula 1, caro, sofisticado, luxuoso e hedonista, estendia o tapete vermelho para o francês.

E Senna, numa de suas primeiras corridas, nas estreitas ruas do principado de Mônaco, aproveitou intensa chuva para sobrepor-se aos demais em sua modesta Toleman. Senna fez uma das melhores corridas que já se viu de um piloto de Fórmula 1 (a maioria das outras viria a ser dele próprio, mais adiante), e, quando passaria Prost, que corria pela poderosa McLaren, viu a prova ser interrompida para dar a vitória ao francês. Prost levou aquela, mas Senna, ao longo de sua carreira, seria o maior vencedor da história, desta que é conhecida como a mais difícil das corridas.

Vieram os anos e Senna foi enfrentar Prost na McLaren. Veio o primeiro título mundial em 1988, saindo de décimo sexto para passar Prost, tomar a primeira posição e vencer a corrida, noutra das maiores atuações de um piloto na história (acostumem-se com a frase). Sem os grandes conglomerados europeus, Senna humilhava Prost. E, em 1989, o brasileiro fez outra das maiores atuações, no Japão. Passando toda a corrida na segunda posição, logo atrás do francês, Senna tentou a ultrapassagem no fim da corrida. Sem suportar novo vareio de seu rival, Prost bateu propositalmente em Senna, abandonando a prova. Senna continuou com o carro batido, arremedou-o nos boxes, retornou, passou o primeiro colocado e venceu a corrida.

Ele precisava daquela vitória, porque estava atrás de Prost graças a outro piloto que tinha jogado o carro contra ele, em Portugal, o inglês Nigel Mansell. Os comissários aproveitaram a oportunidade, desclassificaram Senna por ele ter passado por uma área de escape para retornar à corrida, garantindo o título a Prost. Senna, como bom brasileiro, seguiu em frente. No ano seguinte, mais uma vez contra Prost, estava em vantagem no campeonato. Quando a corrida começou, na mesma pista japonesa, foi malandro como seu povo o ensinou. Deixou o francês sair à frente e, vingando-se da pilantragem do ano anterior, não fez a curva e deixou que os dois carros se estropiassem na caixa de brita. O bi foi assegurado e o bibelô do imperialismo sairia derrotado.

Tão vencido que não disputaria com Senna no ano seguinte, em que o brasileiro foi absolutamente dominante e sagrou-se tricampeão. Ainda assim, produziu a quarta entre as maiores atuações de um piloto em toda a história. Quando parecia que venceria pela primeira vez no Brasil, diante de sua torcida, viu quebrar a sua caixa de marchas a dez voltas do fim. Com vantagem para o segundo, teve de pilotar com apenas a sexta marcha por dez voltas, o que tornava a direção mais pesada, as freadas e reacelerações mais difíceis, e o corpo mais desgastado. Naquele dia, como nunca antes nem depois na história da Fórmula 1, o ser humano derrotou a deficiência da máquina, e Senna desmaiou minutos depois de vencer, ainda dentro do carro.

Sabendo que jamais o venceriam em condições normais, os grandes conglomerados se articularam e abasteceram a Williams, uma das rivais da McLaren de Senna, com dispositivos eletrônicos que faziam o carro vencer sozinho. Inaugurou-se a receita do sucesso para todos os recordes que existem até hoje, de Schumacher, Hamilton, Vettel, Verstappen. Uma equipe, muito dinheiro, todas as vitórias, muito lucro.

Senna não teve mais condições de vencer. Fez corridas memoráveis, uma delas largando em quinto e passando todos os rivais numa só volta (Prost entre eles), e correndo com pneus de pista seca na chuva, para manter-se em primeiro contra o equipamento das Williams. Seria a quinta entre as maiores corridas de um piloto na história. Mas não teve jeito. Mansell e Prost ficaram com os títulos em dois anos.

Em 1994 viria a oportunidade de Senna guiar a Williams.

Subitamente, mudaram as regras e proibiram os equipamentos que davam à vitória à equipe. Porém, um certo Schumacher apareceu com os mesmos benefícios, disfarçados, numa das maiores roubalheiras que a Fórmula 1 conheceu (Schumacher viria a ser conhecido por outras). Senna, desesperado por vencer a Benneton do piloto alemão, pediu alterações arriscadas em seu carro, entre elas um reposicionamento da barra de direção. A solda se quebrou numa corrida na Itália, numa curva veloz com um muro próximo. Senna bateu, um dos destroços do carro perfurou seu capacete e o crânio, tirando-lhe a vida ali mesmo. A morte foi comunicada horas depois.

Senna morreu pelas mãos do imperialismo. O grande capital criou as condições para que o brasileiro desistisse de tentar ser campeão, ao que ele respondeu se arriscando a morrer. Ali, porém, Senna perpetuou sua vitória, imortalizando-se como representante dos países pobres num esporte de ricos e tornando-se um herói nacional no Brasil. Seu segundo maior atleta, depois de Pelé, mas o maior herói. Pelé foi divino, de absoluta admiração contemplativa, como se ouve uma sinfonia de Beethoven. Senna foi humano, enfrentando o imperialismo de forma catártica, como numa história de El Cid contra os mouros. Com uma armadura de elmo amarelo, rasgado de vermelho e azul. A pintura de um capacete nas cores de seu país, como exigia a heráldica medieval.

Os recordes que o sucederam foram artificiais, plantados em garotos-propaganda de uma Fórmula 1 sem vida, feita para vencerem os escolhidos dentre um clube. Senna, e outros brasileiros, enquanto puderam vencer, foram a mais pura expressão do talento em dirigir.



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