
150 anos de Santos Dumont. 120 de injustiça
Em julho, todos os aeroclubes do mundo poderiam estar unidos numa imensa celebração. O ano de 2023 é marcante para a história da cultura e da ciência. Isso porque, em 20 de julho de 1873, nasceu o brasileiro Alberto Santos Dumont, o inventor do avião e fundador da aviação como campo do conhecimento. Ou seja, não somente o homem que criou a máquina, mas também que deu fundamento às ciências aeronáuticas. Portanto, celebra-se o sesquicentenário daquele que deu forma real ao sonho do ser humano de voar.
Contudo, este também é o ano da maior infâmia científica da história. Em 17 de dezembro de 1903, foi realizado o salto em linha descendente do planador Wright Flyer I, na cidade norte-americana de Kitty Hawk, estado da Carolina do Norte. Anos mais tarde, este seria tomado como o marco da invenção do avião, atendendo aos interesses dos Estados Unidos na primazia sobre a maior invenção do século XX.
O teste privado, realizado pelos irmãos Orville e Wilbur Wright, ocorreu num dia de fortes ventos, junto a uma escarpa no litoral-leste americano. Conforme consta em relatórios dos próprios inventores, foi realizado uma vez e a aeronave caiu, resultando apenas uma foto. Noutra tentativa, o veículo planou por vários metros, após ser empurrado por um trilho e contar com ventos contra a proa para sustentar-se no ar, estando o piloto, Orville, deitado para melhorar a sustentação das asas. Um processo semelhante a uma asa-delta, só que com motor. Isso é tudo o que ocorreu naquele dia, o qual os Estados Unidos impuseram como a “data da invenção do avião”. A foto, de um planador caindo, ficou como legitimadorai.
Nessa época, o jovem brasileiro nascido em Cabangu, cidade em Minas Gerais que hoje leva seu nome, já era oficialmente reconhecido como inventor do balão dirigível. Contornara a Torre Eiffel em 19 de outubro de 1901, em trinta minutos, de acordo com as regras do Aeroclube da França. Acompanhado pela imprensa e revisado por pares em todos os seus projetos, ele mirava agora a invenção de um meio de transporte mais pesado que o ar, o que solucionaria definitivamente os problemas da navegação aérea.
Apenas essa comparação já dá os primeiros elementos de quem foi Santos Dumont e quem foram os Wright. Um, amplamente reconhecido por dar ao homem o dirigível, já disseminado pela Europa. Amado pelo povo, ao doar os prêmios por todos os seus feitos aos operários francesesii, reunindo multidões a cada tentativa de um novo experimento. Amigo de outros grandes inventores, estadistas e artistas, como Graham Bell, Thomas Edison, Louis Cartier, Theodore Roosevelt, Princesa Isabel, dentre outros. Dono de pilhas de manchetes sobre inovação científica nos principais jornais da época, nos quais disponibilizava gratuitamente os segredos de seus inventos.
É essa a dimensão da qual pouco se trata, mesmo entre quem reconhece Alberto Santos Dumont como o único legítimo inventor do avião. Tal como a sua trajetória como cientista, os princípios da ciência afiançam a sua primazia.
Ciência é partilha do conhecimento
Talvez seja essa a questão fundamental para o entendimento sobre Santos Dumont ter ou não inventado o avião. Muitas pessoas se atêm ao conceito de voo, buscando avaliar como uma máquina “voa”, se ao se autopropulsar ou ser projetada contra o ar: o tal dilema sobre a catapulta. É fato que essa discussão é importante. Do ponto de vista científico, “voa” aquilo que sobe com as próprias forças, vai de um ponto A a um ponto B, e aterriza em segurança. Objetos lançados, como um ônibus espacial, ou sem a capacidade de pouso controlado, como uma asa-delta, não voam. O planador Wright não cumpria essas normas. Mas não há de se perder mais tempo com isso.
Por que Thomas Edison inventou a lâmpada, Nikola Tesla a corrente alternada, Guglielmo Marconi, o rádio, e Graham Bell o telefone? Seguramente, assim o consideramos porque eles compartilharam de seu conhecimento com o mundo. Não inventa quem retém conhecimento, mas quem o promove. O conceito de invenção nunca foi condicionado ao retorno econômico, que pode até existir como consequência, mas que fica em detrimento quando se trata dos ritos científicos. Toda invenção, inovação ou descoberta tem reconhecimento assim que publicada, pois nesse momento cumpre-se o rito fundamental: a partilha do conhecimento para o progresso da humanidade.
Aqui mesmo no Brasil, um nome importante da ciência brasileira viveu o mesmo problema, só que em situação contrária. O padre Roberto Landell de Moura teria feito, no final do século XIX, o primeiro sistema de radiodifusão do mundo, estabelecendo comunicações de rádio entre o Colégio dos Jesuítas e a Diocese de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul. Anos depois, o já referido Marconi apresentou ao mundo o Telégrafo Sem Fios, que ainda em vida ele evoluiria para o rádio, recebendo o Prêmio Nobel de Física.
O que, hoje, parece uma invenção banal, já que estabelecemos quase todas as nossas comunicações por meio digital, na época revolucionou a capacidade do ser humano em se comunicar, e foi uma das mais importantes ferramentas para a expansão do capitalismo no século XX. Se o avião integraria toda a Terra pelos ares, a radiodifusão (que naturalmente se desdobraria na TV), entraria em todas as residências levando informação, entretenimento e, sobretudo, propaganda ideológica. Tudo diretamente nas casas das famílias trabalhadoras, atingindo adultos e crianças. O consumo, força motriz do capital produtivo, teria nos veículos de comunicação de massa a sua principal ferramenta de difusão.
Os experimentos de Landell de Moura, no entanto, não permitem atribuir ao padre gaúcho a primazia sobre a radiodifusão, visto que seu trabalho resultou somente numa atividade lúdica, não tendo sido apresentado a outros cientistas para sua compreensão e consequente aprovação. Tampouco existiu uma conexão deste protótipo com outros inventos, para que a sociedade europeia, então a mais avançada, pudesse dar reconhecimento e aperfeiçoamentos, promovendo a invenção em benefício da humanidade.
No contexto da invenção do avião, há de se entender que todos os dilemas da física moderna, isto é, anterior à teoria da relatividade e estudos sobre corpos espaciais, estavam solucionados. O ser humano já sabia navegar, manter o funcionamento autônomo de máquinas a vapor ou combustão, deixara os veículos de tração animal para operar máquinas autopropulsadas, navegava abaixo da linha da água, comunicava-se à distância por ondas magnéticas, dentre outras várias conquistas que encerravam a era das descobertas mecânicas. Todavia, restava uma não solucionada.
O voo, sonho do ser humano desde eras mitológicas, ainda era um mistério, visto que a observação da natureza, via de regra o ponto de partida para vislumbrar soluções mecânicas para avanços tecnológicos, não fornecia resposta que fosse, na prática, esclarecedora. Como será observado e detalhado mais à frente, o pássaro, referência natural, bate asas e usa de ação e reação como parte fundamental do voo. A partir daí, centenas de inventores, entre eles o célebre Leonardo Da Vinci, tentaram, em vão, criar mecanismos batedores de asas para construir uma máquina capaz de decolar, estabelecer voo controlado e pousar.
Se a asa gerasse força contra o chão, para que este a devolvesse e jogasse o veículo para cima, seria necessário um bater constante, uniformemente ritmado e rápido, para garantir estabilidade. Caso contrário, restaria um salto de galinha. Muitos, em vão, tentaram lançar-se do alto para estabilizar o voo a posteriori, abrindo mão da decolagem, o que resultou num alto número de mortes. A solução mais lembrada da época pré-Dumont é a de Otto Lilienthal, alemão inventor da asa-delta, que deu grandes contribuições para compreender que o fluxo dos ventos é o principal estabilizador do voo, e não o bater de asas. Nenhuma construção humana consegue se equiparar à eficácia da musculatura animal, portanto, este processo, quando feito por máquina, perdia demasiada energia com a geração de ritmo e aceleração do processo mecânico cima-baixo, que pedia motores mais potentes e pesados, e para compensar, asas mais longas. Por isso, as asas longas também pediam corpo mais robusto, o que requeria novo aumento de potência e consequentes tamanho e peso do motor, num enxugamento de gelo que se prolongava como uma dízima periódica.
Observando o caso dos planadores já desenvolvidos por Lilienthal, o brasileiro deu atenção a experimentos observados pelo britânico Lawrence Hargreave, que empinava pipas gigantes para subir agarrado a elas. Dumont começou a compreender que quando um veículo mais pesado que o ar, em contato com o vento, imprime uma dada aceleração, ele tende a subir, e sempre subirá conforme a força de sua aceleração for diretamente proporcional a seu peso. Esse é o motivo pelo qual sobe a pipa, que, mesmo sem acelerar, recebe uma dada aceleração vinda dos ventos. Vento mais forte, pipa mais pesada.
Percebeu Dumont que tais objetos criavam uma diferença de densidade no ar, verificada entre a parte de baixo e a parte de cima do corpo voador. O aeroplano, mudando sua angulação ante os ventos, sobe pelo atalho da densidade menor acima, apoiando-se no colchão da densidade maior abaixo. Para tal, um menino que empina a pipa vai manobrando a linha para mudar o ângulo do papagaio, e um aviador inclina o avião com o uso do leme. Esse fenômeno foi sistematizado como Equação de Bernouli, nos cálculos da física.
Tudo isso é dito, e será detalhado adiante, para reforçar que Santos Dumont inventou o avião porque, tal como qualquer cientista, descobriu academicamente os princípios científicos do voo. Sistematizou-os em seus diários e patentes abertas, compartilhando suas ideias com o mundo. Não haveria voo se a aviação seguisse sendo intuitiva, feita por aventureiros que se jogavam contra o ar, sem atestar a confiabilidade de um método para alçá-lo. Ou seja, um cientista que encontrasse o procedimento definitivo para o básico do voo: decolagem, planagem, pouso.
O curioso, neste caso, é que, diferentemente de seus pares daquele tempo, os já citados Edison, Tesla, Marconi, Bell, o brasileiro tinha sua inspiração muito mais afiada pela arte que por outros cientistas. A criação do avião, em 23 de outubro de 1906, tem sua origem, sobretudo, num dos mais conhecidos escritores franceses: Júlio Verne.
A saga dos balões
Foi-se o tempo dos balões, é verdade. Os últimos dirigíveis já vão sendo substituídos por drones nas coberturas de eventos para a TV, rastreamento de fenômenos naturais etc. Entretanto, no final do século XIX, eles eram os mais visionários dos experimentos científicos em curso. Poderia haver outros de igual importância, na biologia ou na química, mas não mais visionários. Um balonista era tal qual um astronauta de hoje.
Obras clássicas sobre balonismo foram escritas naquele fim de século, conhecido como a “Era Vitoriana” pelos ingleses ou a “Belle Époque”, na França. Neste contexto, estava o escritor mais renomado da literatura mundial, Júlio Verne, que se tornou praticamente um profeta de vários sonhos da ficção científica que passaram à realidade: o submarino, as longas e rápidas viagens, as jornadas espaciais. E o balão não poderia faltar nas suas narrativas, sendo ele próprio protagonista em “Cinco semanas num balão” e sendo os meios de transporte modernos, em geral, protagonistas em “A volta ao mundo em 80 dias”.
Em “Cinco semanas num balão”, o Dr. Samuel Fergusson assume a aventura de sair de balão desde litoral leste até o oeste africano, acompanhado pelo criado Joe Wilson e por um amigo escocês de longa data, Dick Kennedy. Num aeróstato totalmente concebido por Fergusson, eles cruzam a África e vivem aventuras que jamais os europeus tinham experimentado. Já em “A volta ao mundo em 80 dias”, talvez a principal obra de Verne, o misantropo Philleas Fog resolve sair de casa e aposta com os amigos de um clube que, dentro de 80 dias, poderia deixar a Inglaterra e regressar ao ponto onde saiu. Diante do ceticismo de todos, assume o desafio, e cumpre com o desejado utilizando-se de navios e estradas de ferro.
Ainda criança, Santos Dumont começou a sonhar com o voo ao ler esses clássicos do escritor francês. Durante a infância, insistia com os amigos, na fazenda do pai ou no Colégio Culto ao Saber, ambos em Ribeirão Preto, estado de São Paulo, em dizer que o ser humano era um animal que voa. Ele, que se arriscou como escritor, documentou tais episódios num de seus livros, “Meus balões”iii. Entre outras teimosias, não hesitava em perder pontos no jogo de adedonha, se a rodada pedisse o nome de um animal que voa, com a letra H. Homem.
Porém, não era apenas Verne que inspirava Santos Dumont. Havia também uma tradição exploradora do Brasil, que vinha de ancestrais navegadores, passava pelas entradas e bandeiras e, nesse ínterim, via nascer no país uma das principais tradições de estudos sobre a navegação aérea em todo o mundo.
Setor de ponta da ciência brasileira
O estudioso dos gases Bartolomeu Lourenço de Gusmão, padre nascido em Santos, estado de São Paulo, foi, no começo do século XVIII, o primeiro a comprovar que um corpo elevado por gases poderia levar uma pessoa de um ponto ao outro. Gusmão apresentara protótipos pequenos, a fim de simular seu desempenho com um ser humano. Conforme seus cálculos, as equações para perfeito funcionamento no tamanho necessário para transporte de pessoas já estava clara. Maior o tamanho do envelope do balão (a lona em forma de cogumelo onde se sopra o ar quente), maior a necessidade de infusão de ar quente, em razão proporcional, para sustentar o corpo do próprio veículo e do passageiro.
Algumas demonstrações foram um sucesso, apresentadas aos nobres na região dos Algarves, sul de Portugal. Porém, experiências bem-sucedidas intercaladas com incêndios, e quedas do aeróstato devidas ao vento, amedrontaram os portugueses, que dispensaram a novidade. Embora o projeto tenha sido interrompido pela corte portuguesa, ficou a lenda de que ele teria criado em segredo um dirigível grande o bastante para transportar muitas pessoas, chamado “A Passarola”, que alimentou o imaginário dos balonistas por todo o século XIXiv. O padre inspirou gerações de cientistas e artistas, que chegariam até os dias atuais, quando o escritor José Saramago homenageou Gusmão com o romance “Memorial do Convento”.
Todavia, ainda naquela época, influenciou o trabalho de outro brasileiro: Júlio Cezar Ribeiro de Souza. Nascido em Belém, estado do Pará, Ribeiro de Souza era um jovem pobre e mulato, que assentou praça como voluntário e ascendeu socialmente durante a Guerra do Paraguai. Conseguiu financiamento do Império do Brasil, por intermédio do Barão de Teffé, e foi trabalhar no Instituto Politécnico Brasileiro, na capital federal.
Em 1880, criou o balão La Victoria, com o qual codificou as regras da navegação por balões, deixadas no tratado “Memória sobre a navegação aérea”v. Já naquele momento, europeus tentavam a primazia sobre controlar um veículo mais leve que o ar. O avião ainda estava longe de ser postulado e alcançado por Santos Dumont. Neste contexto, Ribeiro de Souza contestou o que dizia o principal balonista francês da época, o francês Henri Giffard, e escreveu que os balões deveriam ter formato assimétrico, com centro de empuxo na parte da frente. Pensou a utilização de lastros de peso para o manejo da inclinação do dirigível, controlados por meio de duas alavancas que eram puxadas pelo piloto e, em pleno voo, redistribuíam o peso do balão ao mudar o fluxo de água numa engenharia própria, interna e na parte de baixo do envelope. Essa seria a estrutura fundamental, segundo a qual Santos Dumont, em 1901, daria formas definitivas ao dirigível.
Apresentando-se na Europa, Ribeiro de Souza tirou exclamações do chefe da Sociedade Francesa de Navegação Aérea, que disse: “Como eu lamento que o inventor não seja um francês!”vi. Esse sentimento foi importante para que Ribeiro de Souza tenha sido esquecido em favor de nomes como Lillienthal, o norte-americano Samuel Langley, que inventou o planador, e Giffard. Tinham as costas quentes dos países imperialistas. Mais tarde, a mesma situação atingiria em cheio o trabalho de Santos Dumont.
Por fim, naquela mesma época, um terceiro brasileiro impressionava a Europa. Augusto Severo Albuquerque Maranhão era nascido em Macaíba, estado do Rio Grande do Norte. Caboclo, filho de fazendeiro decadente tornado comerciante, descendia da índia tabajara Muira Ibi, uma das fundadoras da cidade de Natal, capital potiguar. Político e idealista inspirado nos heróis de Guararapes, notabilizava-se como velocista e iniciava trabalhos para compreender a navegabilidade. Seu principal invento foi o dirigível Pax. Utilizava-se não mais de lemes e lastros para curvas, mas de sete hélices dispostas ao redor da nave, que, acionadas a cada lado, poderiam orientar o aeróstato no ar, com muito mais precisão e estabilidade, dada a força imprimida pelas hélices. Era o começo do pensamento sobre um veículo mais pesado.
Teria em 1902, entretanto, um fim trágico ao buscar o mesmo contorno da Torre Eiffel, que Santos Dumont lograra em 1901. Ao abordar a torre, as hélices não suportaram a resistência do ar no processo de curva, superaqueceram e se incendiaram, espalhando fogo pelo balão e atingindo o envelope. O aeronauta brasileiro tentou controlar o aeróstato até pousar no Rio Sena, mas não teve sucesso e morreu. Todavia, sua audácia, de quem já vislumbrava a necessidade de dispositivos pesados para obter velocidade e estabilidade, deixaria marcas no cinema. Admirado pelo pioneiro cineasta Georges Meliès, teve seu heroísmo e morte retratados no filme “A catástrofe do balão Le Pax”. Há uma placa em sua homenagem na Avenue du Maine, 81, onde caiu o balão. Uma rua próxima foi nomeada Rue Augusto Severovii.
Dumont, por sua vez, foi tomado por profunda tristeza pela morte do colega e companheiro de estudos, vivendo a primeira de suas crises de depressão em razão das falhas e maus usos dos meios de transporte aéreo. Ao refletir sobre a busca de Severo por um veículo pesado, decidiria investir em estudos sobre o mais pesado que o ar, a fim de solucionar de vez os problemas de velocidade e estabilidade.
Enumerados os feitos e contribuições científicas desses brasileiros, que se interconectam até a invenção do avião, fica claro que Santos Dumont não é produto da ciência francesa. A ascensão de Dumont, como nome maior da aviação pioneira, surge da ciência brasileira. Desde a fictícia Passarola, pensada intuitivamente por Gusmão, até o real 14-Bis, que decolou pilotado por Dumont em meio à efervescência científica e cultural daquele início de século, eram todos herdeiros da tradição navegadora e expedicionária que fundaram o Brasil. Nas décadas em que se conquistava a aviação, quando se iniciaram os experimentos para transformar o que era aventura em meio de transporte, o Brasil tinha o que havia de mais avançado no setor.
A soma dos principais inventores da pesquisa aeroespacial dos países ricos, a se considerar Langley, Giffard, Lilienthal e os irmãos Wright, é quatro. Respectivamente na linha do tempo, o Brasil sozinho formou Gusmão, Ribeiro de Souza, Severo e Dumont. Igualmente quatro, um só país. De São Paulo, do Pará, do Rio Grande do Norte e de Minas Gerais. De diferentes raças e origens sociais, formados pelo trabalho de centenas ou milhares de brasileiros, que representavam os esforços de milhões pela construção de um país. O que a ciência brasileira tinha de melhor, no fim do século XIX, arrastava a Europa no caminho da conquista da aviação.
Herói do balonismo incomoda a Europa
Diferentemente do contemplativo Bartolomeu de Gusmão, do meticuloso Ribeiro de Souza, e do impávido Augusto Severo, Santos Dumont encantou a Europa com sua personalidade irreverente. Após estudar com o renomado acadêmico Henri Lachambre e com seu colega nordestino, Dumont criou seu primeiro balão, o Brasil, um pequenino modelo individual que ele conseguia dobrar e guardar numa mala. Subsequentemente, o brasileiro avançou em sua fixação em criar inventos populares: fez um balão que ele poderia atrelar à janela de um restaurante, abrir uma pequena mesa e jantar dentro do veículo.
Enviado à França pelo pai, Henrique, após este sofrer um acidente a cavalo e ficar numa cadeira de rodas, Santos Dumont já era inventor ao sair do Brasil. O pai o enviara à França para aperfeiçoar seus conhecimentos em mecânica e, desta forma, contribuir com o crescimento da fazenda, que já não usava mão de obra escrava. Ainda no Brasil, o jovem tinha deixado sua primeira invenção, a peneira mecânica de movimentos circulares, para café, que economizava energia se comparada à de movimentos laterais. Tal mecanismo existiu por muitos anos e foi, até a morte de Santos Dumont, a única patente registrada em seu nome. Ele também já tinha aperfeiçoado encaixes para vagões de trem, nos terminais de carga das fazendas, onde por vezes roubara locomotivas para divertir-se conduzindo-as sozinho pelas ferrovias da vizinhança.
Fascinado por máquinas e pela aeronáutica dos livros de ficção, Dumont se encontraria com Lachambre e Severo, já em Paris, e deixaria os estudos sobre mecânica para a indústria cafeeira, desenvolvidos durante a adolescência, para investir em seu sonho, e no sonho do ser humano, de voar. O jovem também amava o fascínio e os aplausos das pessoas a seu trabalho, o que foi a motivação maior para uma vida cem por cento dedicada a invenções. Seu primeiro balão era pequeno, pesava três quilos, feito de seda, e ganhou o nome de seu país. Com o Brasil, o inventor pôde estudar questões fundamentais sobre meteorologia, a fim de desenvolver suas pesquisas sobre o comportamento dos corpos sólidos na fluidez atmosférica.
Com seus aeróstatos Número 1, 2 e 3, o brasileiro deixou os experimentos com veículos esféricos e, aos poucos, tendeu aos balões de formato cilíndrico, já seguindo a tendência apontada por Giffard, Ribeiro de Souza e Augusto Severo. Buscando encontrar melhores desempenhos em velocidade e curva, Dumont caminhava não somente na conquista de recordes pessoais, mas na compreensão do comportamento de um veículo no ar, e da capacidade de orientação e percepção do ambiente aéreo, algo ainda quase desconhecido pelo homem.
“Na aerostação esférica marcha-se com o vento, não o sentindo. […] Por este e outros aspectos, aliás, pode-se comparar a navegação aérea à navegação fluvial a vapor. Com a navegação a vela a analogia é nenhuma. Bordejar não quer dizer nada. Se o menor vento sopra, sopra sempre numa direção dada; com a corrente de um rio a analogia é completa. Se não há vento algum, pode-se então comparar a navegação aérea à navegação sobre as águas mansas de um lago.”
“Suponham que meu motor e meu propulsor me forneçam no ar uma impulsão de vinte milhas. Se avançar na direção da correnteza fará trinta milhas por hora. Estarei na situação do capitão de um vapor cujo propulsor determina, quer a favor, quer contra a corrente, uma velocidade de vinte milhas horárias. Imaginem agora que a correnteza seja de dez milhas. Se o vapor navegar contra ela, fará dez milhas a hora em relação à margem, posto que na água ele forneça uma velocidade de vinte milhas. Se avançar na direção da correnteza, fará trinta milhas em relação à margem, apesar de não fornecer à água velocidade superior a vinte. Esta é uma das razões que tornam tão difícil a avaliação da velocidade duma aeronave.”
“O navegador aéreo não possui sobre o outro (o fluvial) senão uma vantagem, que é grande: pode deixar uma corrente por outra. O ar está cheio de correntes variáveis. Subindo, encontrará ou uma brisa favorável ou uma região calma. Devo esclarecer que estas não são senão considerações práticas, nada tendo que ver com a aptidão da aeronave para lutar, em caso de necessidade, contra a brisa.” viii
Deste trecho, percebe-se que Dumont já investigava conhecimentos que seriam imprescindíveis não só para a aerostação, mas para a aviação. Se, no âmbito dos balões, Dumont entendia a dificuldade em vencer a força dos ventos, estando o aeronauta em permanente negociação com eles, isso seria o sustento para sua ideia vindoura, de que somente o veículo mais pesado permitira o avanço da navegação aérea. E, ainda nessa fase, entendia como funciona o espaço aéreo, já tomando nota de que um piloto pode mover-se entre diferentes altitudes para evitar intempéries meteorológicas, algo impensável em mar e terra.
Empreitando esses trabalhos e obtendo ótimos resultados, Dumont passou a chamar não só a atenção de seus pares aeronautas e cientistas, mas de todos os tipos de inventores, nobres e burgueses europeus. Dumont era rico, filho do principal cafeicultor do Brasil. Entre a burguesia europeia, tornou-se aceito, mas jamais foi incorporado. Seus inventos divertidos e suas ideias muito úteis sobre a navegação aérea, ainda consideradas ingênuas, o fizeram transitar entre desde políticos até a polêmica artista Mata Hari. Contudo, quando deixou a irreverência de uma certa aeronáutica trivial, para colocar-se seriamente como contendor na busca pelo dirigível e, mais tarde, o avião, as coisas mudaram.
Em 1901, o bilionário do petróleo Henri Deutsch lançou uma competição com prêmio de cem mil francos para quem, usando um balão de combustão a gasolina, contornasse a Torre Eiffel em trinta minutos. Santos Dumont assumiu o desafio e passou a construir seu balão Número 4, concebendo-o com estruturas de seda e bambu, materiais que marcariam suas invenções. A leveza do bambu e da seda, aliados à resistência dessa última, ofereciam ao brasileiro a confiabilidade que ele desejava. Junto a motores leves de 1,5 cavalo de potência, mas capazes de gerar 1.200 rotações por minuto, e também com enchimento de hidrogênio e isqueiro do recém-inventado alumínio, tornavam seu balão o mais equilibrado da época.
Entre seus vários experimentos, Santos Dumont mexeu várias vezes na estrutura do dirigível. As dimensões da quilha (a parte rígida onde ia o piloto) e o envelope (a parte que se enche de ar) eram sempre mantidas. Mas ele mudou várias vezes o lugar do banco do piloto e da hélice, entre dianteira e traseira, e banco mais atrás ou mais à frente. Entre várias configurações, estabilizou-se à ideia de que o leme e o motor seriam traseiros, o isqueiro seria central e o posto do piloto seria entre o centro e a frente. Controlando a chama do isqueiro, que alimentava o envelope, ele subia e descia. Manejando alavancas que controlavam o peso das reservas de água dentro do envelope, ele puxava-o para um lado ou o outro, proporcionando a inclinação necessária para que o balão fizesse as curvas. Assim, ele tinha o manejo que faltava aos seus concorrentes.
Sua primeira tentativa falhou. Perdeu aceleração devido a um problema no isqueiro e caiu, terminando dependurado na janela de um importante hotel de Paris, em meio aos destroços de seu modelo Número 4. Somente com escoriações e hematomas, voltou ao trabalho e fez aperfeiçoamentos para o Número 5, quando quase obteve sucesso, mas, no meio do contorno da Torre Eiffel, perdeu o controle do balão ao buscar o relógio de bolso para marcar as horas. Deixou que uma brisa o levasse no sentido errado e terminou por pousar, coincidentemente, nos jardins do palácio da Condessa d’Eu, como fora conhecida a Princesa Isabel após o golpe da República.
Resgatado pela nobre, ele retornou aos trabalhos e pensou a solução para o problema que lhe tinha tirado da última prova. Para marcar o tempo, melhor seria se tivesse um relógio integrado ao próprio corpo. Como, durante o manejo do balão, ele olhava constantemente para os braços, entendeu que um relógio em tira ao pulso resolveria seu novo enigma. Por isso, encomendou ao joalheiro Louis Cartier o seu novo e singelo invento, que tornou-se uma febre em Paris. Ele não saberia que, depois do avião, possivelmente a sua invenção mais popular tinha nascido de um despretensioso equipamento de sua pesquisa.
O relógio de pulso já existira como joia na Inglaterra, no século XVII. A própria rainha Isabel I o utilizara. Porém, seu uso como extensão do corpo humano, otimizando suas atividades em meio à operação de uma máquina, ou atravessando a rua, surgiu com Dumont. Tornou-se tão necessário que, rapidamente, deixou de ser joia para ser item obrigatório a todos. O primeiro relógio de pulso ficou conhecido como “Cartier-Santos Dumont”, que existe até hoje, vendido a preços exorbitantes pela mesma joalheria. Já os muitos relógios falsificados da Casio encontra-se a R$ 20 na Rua 25 de Março, em São Paulo. Todos, porém, legado do invento menos trabalhoso deixado por Dumont: uma tira de couro para amarrar um relógio ao pulso.
Finalmente, Santos Dumont, com seu dirigível Número 6, venceu a prova no dia 19 de outubro de 1901. Entretanto, a saga do dirigível não terminava ali. Ele foi impedido de ter seu invento reconhecido pelos comissários do Aeroclube da França, que consideraram que ele se atrasou ao parar completamente o veículo, o que não estrava claro nas regras. O contorno tinha sido feito em meia-hora, entre ida e volta, mas uma multidão o havia parado ao abordar o ponto de desembarque. Como ele perdera tempo pedindo licença ao público, os comissários entenderam que ele não tinha parado completamente, nem ancorado o seu balão, formalizando o fim da jornada. Evidente relutância em aceitar que um brasileiro tinha inventado o dirigível.
Em resposta, Dumont pressionou os comissários, prometendo dedicar os cem mil francos (uma cifra multimilionária nos dias atuais) ao povo pobre de Paris. A revolta popular, ante o não reconhecimento do brasileiro, foi tamanha que milhares de trabalhadores parisienses se reuniram em frente à sede do Aeroclube da França, quando do julgamento da apelação de Dumont. Finalmente, o invento foi admitido e Paris passou a noite em festa. O dinheiro foi repassado a entidades de caridade e associações de trabalhadores. Naquele dia, Santos Dumont deixava de ser querido somente entre os ricos, tornando-se um mito popular na Cidade Luz.
O suspeito atentado nos Estados Unidos
Conquistada a dirigibilidade do balão, o inventor queria conquistar a velocidade. Resolveu trabalhar em duas frentes, o balão de velocidade buscado por Severo, e o veículo mais pesado que o ar. Na França, este último já tinha sido tentado pelo engenheiro Clemènt Ader, que não conseguiu mais que planar em linha descendente, tal como já faziam os Wright. Ao seu projeto, Ader dera o nome de Avion, referente a “ave”, que terminaria por se tornar sinônimo da máquina almejada por vários inventores. Henri Farman, Louis Blériot, Gabriel Voisin, Glenn Curtiss e os irmãos Wright disputavam a primazia com Santos Dumont.
Neste cenário, o brasileiro, trabalhando em duas frentes, foi aos Estados Unidos apresentar o seu balão Número 7, onde este foi sabotado, tendo sua lona esfaqueada num hangarix. Já circulava o burburinho de que os Wright tinham criado a máquina tentada pelos europeus. Porém, eles se recusavam a mostrá-la ao mundo. Dizendo que escondiam seu avião por medo de plágio, ocultavam-no até de quem se dispunha a comprar, exigindo pagamento prévio. Durante o evento em que Dumont se apresentava com o balão de velocidade, era oferecida aos irmãos um prêmio milionário, além da possibilidade de vender o avião. Não apareceram. O atentado ao Número 7 ocorreu nesse contexto, embora não se saiba a real motivação.
De volta à Europa, Santos Dumont manteve sua irreverência e lançou o seu Número 9, a “Balladeuse”, que seria uma motocicleta do balonismo. De uso individual, poderia ser estacionada em qualquer esquina de Paris. Para comprovar, ele usava-a para tomar café e a deixava na rua, como se fosse um carro. Instruiu diversos amadores para conduzi-la e fazerem o seu próprio dirigível, entre eles a socialite cubana Aida D’Acosta, que viria a ser a primeira mulher a conduzir um veículo no ar. A Balladeuse se tornou um sucesso imediato.
Encerrou-se, assim, o período de Dumont como balonista, que deixou contribuições sensíveis quanto à orientação de um corpo construído pelo homem no ar. Experimentos fracassados com planadores, como os de Lilliental e Ader, mostravam que o mais leve ainda era o veículo ideal para entender como uma aeronave lidaria com pressão atmosférica, intempéries meteorológicas, orientação em oito sentidos, segurança aérea etc. E, com o dirigível Número 6, Santos Dumont deu a chave para a solução da maior parte dos problemas.
Restavam a robustez e a velocidade, o ataque ao ar, que só poderia ser realizado com o mais pesado. Santos Dumont passou a mirá-lo em algo entre 1904 e 1905, para inventá-lo em 1906.
Das pipas ao avião: a descoberta da decolagem
Em 1906, a recém-fundada Federação Internacional de Aeronáutica (FAI, sifla em francês para Fédération Aéronautique Internationale) e o Aeroclube da França, diante das dezenas de inventores que buscavam a solução para o voo em todo mundo, definiram o que seria aceito como uma autêntica máquina voadora. A ela, cunhava-se o nome de “avion”, em homenagem ao experimento pioneiro de Clemènt Ader.
O avião deveria ser demonstrado em local público e com data marcada, para que se reunissem juízes, imprensa e testemunhas. Tal demonstração deveria ocorrer em dia de tempo calmo, para que a aeronave não fosse prejudicada ou beneficiada pelas condições meteorológicas. O próprio inventor deveria estar a bordo do avião e anunciar o que faria e como cumpriria a tarefa almejada, para autorização da prova. E, assim, deveria deixar o chão com seus próprios meios, cruzar pelo menos trinta metros e aterrizar em segurança. Tais critérios foram consensuais, de modo que a curva ficaria para melhorias futuras.
A quem cumprisse a tarefa seria concedido um prêmio simbólico, sem recompensas, chamado Archdeacon, em homenagem a um importante industrial da área dos transportes. A láurea seria renovada. Sempre que cumprida uma meta, seriam demarcados de novos desafios, sempre avançando na aviação. E, com novo êxito, seu responsável assumia o título Archdeacon. Foi concedido duas vezes, apenas. A Santos Dumont por inventar o avião, e a Henri Farman por cumprir o primeiro circuito fechado. Ambos antes dos Wright.
O estabelecimento de critérios comuns é a base da busca por uma descoberta científica. Para que vários investigadores avancem em seus projetos, é necessário terem claros os seus objetivos e haver amplo compartilhamento de informações. Isso foi determinante na diferença entre os experimentos dos Wright e o de todos os demais inventores dos próprios Estados Unidos, da Europa e do restante do mundo. Reportes de voos privados havia até na Austrália. Provas demonstradas com critérios consensuais entre vários pares, para progresso na compreensão do voo e criação de novas máquinas, não. Aí começa a história do pai de todos os aviões, o 14-Bis.
Não se sabe a data exata em que Santos Dumont resolveu se dedicar aos estudos sobre o mais pesado que o ar, ainda em paralelo com os balões. Possivelmente depois da morte de Augusto Severo, em 1902, já que a velocidade buscada pelo amigo o tinha levado à morte. O princípio da flutuação, utilizado pelo balonismo, não permitia reais avanços nessa área. Mas sim o que os aeronautas já chamavam de “ataque” ao ar, com um veículo mais pesado, que era tido intuitivamente como mais adequado à missão de acelerar em voo.
Sabe-se que, em algum momento, Dumont manteria observações em seu escritório, estudando um fenômeno chamado “as pipas de Heargrave”. Um físico britânico radicado na Austrália, Lawrence Heargrave, buscara alçar voos por brincadeira, empinando pipas em forma de hexaedro, isto é, paralelepípedos vazados no meio. Quando empinava essa pipa em determinadas condições de vento, mesmo ela sendo muito mais pesada que um papagaio plano em forma de losango, como nas pipas infantis, Heargrave conseguia levantá-la vários metros acima do solo. E, assim sendo, buscava com sucesso equações em que a aerodinâmica e o peso da pipa conseguiam balancear-se com o seu próprio peso, fazendo com que ele fosse puxado e levantasse voo também.
O que parecia um experimento ensandecido de uma espécie de Padre do Balão anglo-australiano (felizmente, ele o fez por muitas vezes sem desaparecer), quando estudado por Dumont, evoluiu para um paradigma diferente. O brasileiro inferiu que, se imprimisse, contra a pipa, a força do motor de um corpo em deslocamento, a subida poderia ser facilitada pelos ventos em proa, alcançados pela própria força do veículo. Desta forma, o mesmo fenômeno que levou Heargrave a voar ergueria um veículo mais pesado que o ar, sem depender de ventos apropriados. Aí nascia o princípio universal da decolagem do avião.
As pipas subiam não somente porque os ventos as sustentavam. Na verdade, ao entrarem em contato com o ar, que imprimia uma dada força sobre o planos das faces do hexaedro, uma determinada inclinação acima fazia com que o ar aumentasse o atrito com a nave. Ao topar com a resistência da pipa, o vento deveria circular mais rápido acima dela, onde a resistência era maior, e mais lento embaixo dela, onde a resistência era menor. Isso porque “os dois lados” tinham que chegar ao ponto final juntos, após o objeto resistente. Uma aplicação prática de uma das principais leis da física: dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço.
Essa disparidade entre as velocidades do ar proporcionava outra diferença, de densidade. O ar mais veloz acima se tornava menos denso, ao passo que o mais lento, abaixo, mais denso. Um, funcionava como um colchão, impulsionando a aeronave para cima; o outro, como um atalho para que o avião subisse, semelhante ao vácuo que puxa um carro de corrida quando muito próximo de outro. Encontrando a velocidade certa e mudando a angulação do avião contra o vento (o hoje chamado “ângulo de ataque”), o avião deixava o chão tal qual a pipa de Heargrave. A descoberta do século nascia de um brinquedo de crianças.
Por meses, Dumont frequentou assiduamente os parques onde mais ventava, em Paris e proximidades. Levando pipas de diferentes pesos e tamanhos, buscou ao máximo experimentar várias situações envolvendo atrito, movimentos, angulações e resistência dos materiais em diferentes formas, para medir a força dos ventos que seriam amalgamados ao avião em seu processo de deslocamento contra o ar. Era um cálculo complicado, que envolvia o peso da aeronave, a potência do motor, o arrasto proporcionado pela resistência do ar, as variáveis quanto à força dos ventos em determinado dia e determinada hora, as condições meteorológicas etc.
A questão do entorno, clima, vento, umidade, dentre outros fatores, eram a maior preocupação de Dumont. Ele já tinha noção de casos como o dos Wright, que dependiam de condições específicas para voar. Como estava claro nos ditames da FAI e do Aeroclube da França, o veículo tinha que decolar independentemente da situação externa. Por isso, Santos Dumont abriu mão da pesquisa sobre o direcionamento do veículo, focando na solução dos problemas de decolagem e pouso. Por uma questão de métodos e prazo, seria impossível encontrar a solução dos dois problemas ao mesmo tempo. Tanto que, paralelamente, os Wright se direcionavam, mas não decolavam.
Em julho de 1906, Santos Dumont concebeu sua aeronave. Um veículo com o corpo em forma de um palito de fósforo, retangular e bem estreito, para aumentar o ataque ao ar. As pipas estariam em todo o bólido, a fim de distribuir a força do motor, quando da entrada do veículo em decolagem. À frente, uma caixa vazada daria início ao processo, quando uma alavanca puxada pelo piloto a inclinasse para cima. Atrás, ao lado da cesta onde ficaria o inventor, seis pipas, conectadas em pares de três, formariam as duas asas.
As asas foram colocadas na traseira do avião, junto ao motor único e central. Era o contrário do que se faz hoje em aviões comerciais, mas igual à estrutura dos caças militares. Esse formato facilita a quebra da resistência do ar, embora seja sacrificada certa estabilidade e dirigibilidade. Santos Dumont precisava do arranque, tal qual um Gripen da Força Aérea Brasileira (FAB) faz para quebrar a barreira do som. Por isso, preferiu essa configuração chamada “cannard” (pato, do francês, já que o pato voa com as asas atrás e o pescoço à frente).
As atuais aeronaves comerciais utilizam o mesmo princípio físico, com algumas ferramentas diferentes. Em vez de uma caixa dianteira, que só existiu no 14-Bis, elas usam os chamados “flaps”, que são partes móveis das asas, que se inclinam para baixo ao funcionar como leme, ao passo que o formato das asas, mais curvo acima e reto abaixo, desvia o ar da mesma forma que as pipas de Santos Dumont. As asas ficam no meio do corpo do avião, fornecendo um meio termo entre o equilíbrio e o ataque à resistência do ar.
Como os Wright dispensavam a decolagem, há muito já trabalhavam com a configuração frontal, que se espalharia naquele começo de século. Isso deixa claro uma diferença de objetivos, nada dizendo sobre qualidade do 14-Bis, como muitos fazem crer. O 14-Bis era melhor que o planador Wright Flyer, somados os três objetivos, pois ganhava em decolagem e pouso. Como já dito, sua engenharia pode ser considerada uma ancestral da configuração atual dos aviões supersônicos, com o bico afilado e as asas atrás e o motor centralizado na traseira, para otimizar a impulsão. Por sinal, alguns aviões militares usam, hoje, catapultas magnéticas para decolar em porta-aviões, porém como conveniência. Todos os modelos em uso voam pelos próprios meios, ao contrário do que argumentam alguns americanos, ao dizerem que a catapulta é recurso da aviação até a atualidade, o que supostamente autorizaria o lançador dos Wright como princípio da decolagem.
Uma vez ilegítimo o uso de força externa de qualquer ordem, a energia necessária para o impulso buscado por Dumont seria obtida com um motor encontrado no sul da França, após intensas buscas por uma máquina que combinasse leveza e potência na medida certa para um voo, o que era um trabalho de garimpo, dada a óbvia inexistência de aviões até então. Dumont encontrou um motor bem leve, de marca chamada Antoinette, que gerava força de 50 cavalos, no qual ele daria partida apertando um pedal, que dava centelha para a combustão iniciada pela rotação da hélice feita por dois mecânicos, dos quais se conhece o nome de um, fiel companheiro de Dumont, de nome Chapin. Esse pedal também serviria para parar o motor, quando apertado novamente. Por fim, rodas de bicicleta fariam o deslocamento em terra para decolagem e pouso. Ao atingir 30 km/h, ele conseguiria manobrar o leme dianteiro e subir.
Assim fora projetado o primeiro avião da história, o qual o inventor apresentou ao mundo de forma muito pouco romântica, no primeiro teste aberto da aeronave, e ainda sem o nome pelo qual foi conhecido. Atrelado ao décimo quarto balão projetado pelo inventor, que flutuava para ajudar sua planagem, e puxado por um burro, o novo aeroplano foi recebido com ceticismo em Paris, antes da prova definitiva, marcada para 13 de setembro.
Dumont buscava testar a dirigibilidade do veículo, até ali um planador. Movendo a caixa dianteira acima e abaixo, por meio de uma alavanca à mão direita, ele subia e descia. Movendo-a lateralmente, por meio de uma roldana à mão esquerda, ele se movimentava para os lados. Os movimentos diagonais se davam por cordas que ele amarrava ao seus ombros e, conforme seu movimento de corpo, mudavam a posição de um obstáculo para o ar que desenhava. Como se fossem placas em forma de losango, dentro das asas, tais obstáculos ficavam em paralelo às asas com o vento quando o avião acelerava. Mas se Santos Dumont inclinasse o corpo e colocasse um deles em posição de maior atrito com vento, o veículo tombava no lado da asa correspondente. A caixa dianteira, quando usada em sua inclinação máxima, era o frio da aeronave.
Esse sistema de subida, descida, esquerda e direita, solucionava a necessidade do movimento diagonal. A esse obstáculo o inventor deu o nome de “aileron”, ou “pequena asa”, que até hoje é o mecanismo usado manobrar dos aviões. Apesar de o 14-Bis não ter realizado curvas adequadamente, e o planador Wright, sim, o sistema que foi adotado pela aviação foi aquele inventado por Dumont. Os americanos buscavam efeito parecido ao projetar uma asa com características elásticas, de estrutura em madeira e partes móveis em lona, o que tornaria impossível a construção de aviões em ligas de metal, primordiais para que o ser humano vencesse longas distâncias e fortes intempéries em situação de voo.
Desta feita, Santos Dumont alinhou seu avião no Parque de Bagatelle, subúrbios de Paris, no dia 13 de setembro de 1906. Suficientemente testado como planador, o veículo seria provado como avião. Seu nome, pela primeira vez apresentado, era simples. Se ele nascera de seu uso como planador, acoplado ao balão Número 14, ele seria a sequência do experimento catorze. Portanto, ele era o “catorze de novo”, isto é, 14-Bis. Diante de ampla comissão científica, imprensa e público presente, o 14-Bis realizou um “magnífico salto”. Deixou o chão com as próprias forças, mas não se estabilizou no ar, percorrendo poucos metros a baixa altitude. Não atingiu os trinta metros exigidos pela FAI e pelo aeroclube, mas encheu os olhos do público, porque, conforme os princípios científicos, tudo indicava que tinha voado. Era necessário mais uma prova.
Por fim, em 23 de outubro de 1906, o brasileiro assumiu novamente o comando do 14-Bis, dessa vez diante de uma multidão, entusiasmada pelo boca a boca parisiense. Dizia-se que o herói da Torre Eiffel estava próximo de voar com o primeiro “avion”. A gíria francesa já ganhava sinergia com a definição da máquina mais pesada que o ar, nascendo com o experimento de Clèment Ader, mas tomando forma com a invenção de Santos Dumont. Com melhorias no formato das asas, retirada de um par de trens de pouso (duplo para simples) e mudanças na forma das hélices, Santos Dumont atingiu a velocidade de 40 km/h em solo, decolou até dois metros e voou por sessenta metros, pousando em seguida. Desse voo singelo, histórias interessantes advieram.
Esse voo é, ou deveria ser, aquele mundialmente conhecido por ter sido filmado pela primeira vez. Entretanto, na filmagem não se vê voo algum. Isso ocorreu porque Dumont demorou a encontrar velocidade para decolar, dada a imensa quantidade de pessoas que o circundavam. A câmera só capta o avião indo e vindo, tentando alcançar velocidade, e um Santos Dumont angustiado, pedindo para que saíssem da frente. Após tentar algumas vezes, em sentidos diferentes, ele voou. Mas foram apenas 60 metros, porque, novamente, demorou a sair e teve medo de se alongar, graças ao grande número de pessoas. Ele próprio, e de forma bem-humorada, admitiu ser mau piloto, visto “não ter tomado aulas com ninguém”x.
Foi o suficiente para que fosse reconhecido o 14-Bis como o primeiro avião. O vídeo não registrou o voo, mas as fotos sim, e as testemunhas eram outros cientistas, jornalistas, todos signatários de sociedades científicas reconhecidas. Mesmo o público reunia nobres, artistas, políticos e outros inventores. A publicação “Le Petit Journal” registrou o voo de Santos Dumont em sua capa. Em novembro, ainda, o brasileiro voou 250 metros a quatro metros de altura. Mais uma vez, atrapalhou-se com o avião e com o povo. Hoje, sabe-se, um modelo 14-Bis voa mais de um quilômetro em linha reta, conforme registrado e gravado por experimentos amadores em aeroportos brasileiros, sendo limitado apenas por sua reduzida reserva de combustível.
Em abril do ano seguinte, buscando realizar uma curva, Dumont perderia sustentação na asa esquerda e sofreria o primeiro acidente aéreo da história. Sem graves danos ao piloto, mas letal para a aeronave. Frustrado com as limitações do 14-Bis e com sua pouca perícia em controlar um avião, ele aposentou seu primeiro modelo. Os materiais, como ele costumava fazer, foram reciclados, e por isso quase nada sobrou do histórico avião. Apenas o seu cesto ainda existe, guardado no 4o Comando Aéreo Regional da FAB.
A controversa trajetória dos Wright
Em 1908 apareceram, finalmente, os Wright. Àquela altura, mais de dez inventores já tinham voado, inclusive em circuitos fechados. Porém, os americanos afirmavam ter voado em 1903, o salto explicado anteriormente, e em 1905, num evento em sua cidade natal. Ambos tinham comprovação apenas testemunhal, já que a única foto era admitida como uma queda. As testemunhas eram desqualificadas para atestarem princípios científicos (não saberiam diferenciar uma asa-delta de um avião). A única imprensa era local e diretamente ligada aos inventores.
O veículo, pesado a ponto ser carregado por dez pessoas, precisava de uma catapulta para planar. No entanto, enquanto planava, o Wright Flyer III mostrava dirigibilidade invejável. Voava por muitos minutos, descrevendo oitos no ar. Contribuição fundamental sobre a dirigibilidade, embora não cumprissem os processos necessários à aviação. Dependiam de lançamento e caíam desajeitadamente, já que não tinham trem de pousoxi.
A história dos Wright chegou bem contada aos europeus, fechando os pontos em que eles tinham deixado lacunas, nos últimos cinco anos. Em 1903, tinham voado por meio de experimentos sabidamente malogrados, mas comunicados por telegrama ao Governo americano, a fim de afiançar aquela data como o nascimento de seu projeto. Já se protegiam para as disputas comerciais em torno da aviação, sabidamente pesquisada na Europa. Vê-se abaixo que, no próprio relato dos irmãos a uma revista francesa, ambos admitiram que o dia 17 de outubro de 1903 fora um insucesso.
Entre aspas, o texto original. Entre parêntesis, comentários do autor:
Em carta dirigida à revista L’Aérophile, de Paris, publicada num dos seus números de 1904, contou Wilbur Wright haver feito “quatro experiências, duas por Orville Wright e duas por Wilbur Wright, a 17 de dezembro (de 1903), das 10 horas e meia ao meio-dia (às 10 horas e meia, a experiência malograda, da qual resultou a foto. Ao meio dia, o lançamento em linha descendente)... A partida era feita precisamente contra o vento. Todas as vezes o aparelho pôs-se em marcha sem impulsão alguma inicial ou outro qualquer auxílio. Depois de um percurso de quarenta pés (doze metros) sobre uma só via do carril, que se mantinha a vinte centímetros acima do solo, a máquina deixou a via e, sob a direção do aviador, elevou-se obliquamente no ar até à altura de oito a dez p&e