Um homem cético em meio à barbárie

Mississipi em Chamas deu um dos principais papéis à carreira Gene Hackman. Numa época em que pouco se discutia sobre racismo e antirracismo, o filme trouxe às telas uma personagem que, constatavelmente, não é racista, mas se vê obrigada a enfrentar a Ku Klux Klan e sair da zona de conforto do "não-racista", tendendo ao antirracismo de seu colega de investigação, interpretado por Williem Dafoe. Complementando-se, nesse dilema do homem branco do norte em meio à barbárie racista do sul dos Estados Unidos, os dois protagonizam uma das mas importantes histórias de denúncia do racismo norte-americano.

O sul dos Estados Unidos era, até aquele momento, regido pelas leis Jim Crow, que separavam os espaços para negros e brancos na sociedade. E, diante disso, evidentemente as elites econômicas brancas faziam com que a separação, além de desigual em favor da população branca, servisse como fundamento para a repressão e a violência. Neste contexto, o filme conta a história de dois policiais americanos enviados pelo Governo federal para investigar a morte de homens negros e judeus pelos brancos do sul, estes organizados na famosa entidade racista e paramilitar Ku Klux Klan. Devido à pregação e morte do líder antirracista Martin Luther King, e ao consequente aumento do número de jovens e forasteiros que visitavam o sul em ativismo por liberdade para a população negra, a Klan se fortalecia e agia recorrentemente em repressão às minorias no estado.

Visitando um pequeno condado do Mississipi, os agentes Rupert Anderson (Gene Hackman) e Alan Ward (Willem Dafoe) buscam entender quem são os líderes da Klan que estão executando negros e judeus no interior do estado, e neste embalo você descobre duas personagens que, como é usual em histórias de investigação, polarizam-se: Ward é idealista, convicto de que as minorias do Mississipi devem ser defendidas e que as leis Jim Crow devem ser revistas nos Estados Unidos, sendo a Klan uma organização criminosa; Anderson é cético, não crê de fato em ideais antirracistas, apenas quer cumprir com seu trabalho e sentir-se fora da questão. Isso é marcado por sua cena de aparição no filme, em que ele está no carro, na carona de Ward na estrada para o estado sulista, e cantarola canções racistas da Klan sem remorço, apenas discordando e considerando-as estúpidas. Sabe, Anderson, que o racismo é um marcador da estupidez, mas não se choca pela desumanização, ao contrário de seu parceiro. 

Ao contrário do que se pode imaginar, seu papel é fundamental, sendo ele o protagonista da obra e Ward seu coadjuvante. Isso porque num estado em que as lideranças estão preparadas para líderes antirracistas vindo as importunarem, sendo, ainda, majoritárias a ponto de imporem-se pelo número, o idealismo de Ward é pouco eficaz. Anderson, pelo contrário, passeia com seu cinismo entre os racistas do sul, dialogando e expondo suas deformidades. Vira e mexe ele faz a piada sobre o baseball: "Por que eu gosto de baseball? Porque é o único lugar onde um negro ergue um bastão para um branco sem ser preso", e, por meio de respostas e reações, ele vai entendendo o que pensava um américano médio do sul dos Estados Unidos, no fim dos anos 1960. E nós vamos com ele.

Entretanto, sempre fica uma tensão sutil, sabendo os brancos que se trata de um investigador do norte. O marcador dessa tensão é a trilha sonora, uma variação de poucas notas em melodia tensa, que se repete sem variações, a cada momento em que a narrativa se acentua, ao longo das duas horas de filme.

Para desvelar o racismo norte-americano, fora a tensão e as performances das próprias personagens frente a autoridade de Anderson, o filme alterna os diálogos com cenas isoladas de depoimentos chocantes de sulistas para uma TV, que cobre a investigação dos assassinatos. Ali, sentindo-se autorizados por estarem diante de uma câmera sabidamente condescendente, surgem afirmações que hoje soam absurdas, mas à época eram naturalizadas. Em paralelo a isso, Anderson se envolve com a Sra. Pell (Francis McDormand), esposa do xerife adjunto local, presa pelas convenções da época a um incômodo papel de dona de casa. A partir dela, ele consegue entender melhor sobre uma região conservadora e parada no tempo, não somente pela vilania de seus homens e mulheres, mas pela marginalização daquela que é a mais pobre das regiões americanas.

A partir de Bell surgem revelações importantes sobre a verdade nos assassinatos do condado, e Ward e Anderson podem progredir e encontrar os culpados, assim como fragmentar o núcleo da Ku Klux Klan que está atormentando a região. Nesse ínterim, os diálogos entre o policial cético e as redes de afetos que ele desenvolve na região, Bell e um menino negro chamado Aaron, fazem com que ele se aproxime dos anseios por liberdade que marcam a população negra da região. Ainda assim, o filme acerta ao não idealizar o protagonista, fazendo dele uma personagem que entra e sai dos problemas do racismo sulista sem perder o distanciamento, sem que nada lhe cause constrangimento, cujo oposto é representado por Ward, que num momento está partindo às vias de fato com os racistas. Tal escolha narrativa é fundamental para humanizar o herói num sentido oposto ao sanguinismo da personagem de Dafoe: a personagem de Hackman é aquela cuja virtude é o cumprimento do dever e do que é certo, mas não a tomada apaixonada de causas justas.

Gene Hackman, nesse que pode ser apontado como seu principal filme, mostra-se o nome ideal para o papel. Frequentemente chamado a interpretar vilões, torna-se ali o anti-herói: o homem que enfrenta o racismo por obrigação profissional, mais que por convicção, e que facilmente poderia ser qualquer um que sabe que é errado, mas não sente na pele o problema. Cumprindo com seu dever, ajuda a enfrentar uma das principais chagas da cultura norte-americana, ora imiscuindo-se com os criminosos, ora rindo-se deles e fazendo-os de ridículos, sem deixar os sentimentos falarem mais alto e prejudicarem seu papel de policial. É possível que esse papel esteja perdido no cinema atual, visto a necessidade de marcadores morais claros, sobretudo em obras que discutem problemas encampados pelos movimentos identitários. Se o filme denuncia o racismo, o herói deve rasgar as vestes em dor pelo racismo, e dificilmente será branco, ou a obra seria desqualificada como "white savior".

O papel interpretado por Hackman em Mississipi em chamas pode ser sintetizado, em poucas palavras, no não envolvimento na causa como símbolo da própria justiça: a mulher cega que segura a balança, ou o homem cético que desdenha da barbárie.



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