O musical e o dilema da IA

Um dos temas mais discutidos nesta temporada de prêmios do cinema, e que vai pautar as discussões ainda nos próximos anos, é o uso de inteligência artificial para melhorar diálogos, atenuar ou retirar sotaques com atores falando outras línguas, aplicar sotaques regionais, corrigir problemas com canto em números musicais etc. Esse dilema de ordem técnica ainda restará até que seja assimilado na medida correta, mas é sempre bom lembrar que outros, como ele, já existiram na história do cinema e alguns novos recursos foram assimilados, superando impasses que pareciam existir em seus nascimentos.

A questão ficou patente em razão de dois filmes concorrentes ao Oscar, um era “O brutalista”, em que o ator que venceu para Melhor Ator, Adrien Brody, usou de inteligência artificial para ajudá-lo a reproduzir o idioma húngaro da personagem que interpreta, o artista plástico Lászlo Tóth; outro era o infame “Emília Perez”, com o qual, de todos os problemas, a IA recebeu menos destaque, diante de imperialismo, xenofobia, racismo, transfobia e outros tantos mais urgentes. Porém, ninguém ali tinha sotaque mexicano ou dominava o canto a ponto de executar um musical. Exceção, vá lá, a Selena Gomez, que é uma cantora do baixo clero da música pop americana.

Para refletir sobre isso, é bom recordar os próprios musicais. Quem sabe, o principal de todos os musicais, em toda a história do cinema: “Cantando na chuva”. O filme conta a história do ator, diretor e produtor de cinema (numa época em que acontecia de os filmes serem grandes empreendimentos de um homem só) Don Lockwood, interpretado por Gene Kelly. Self-made man americano, começara como comediante e dançarino em bares e circos e terminara pioneiro e barão da indústria cinematográfica. Na história, ele filma uma obra chamada “O cavaleiro duelante”, um capa-e-espada à Alexandre Dumas, mas encontra um problema: é o primeiro filme falado de sua equipe, e eles não sabem lidar com os microfones.

Quando o filme começa a dar sinais de fracasso, antes mesmo do lançamento, ele sente que pode abandonar o cinema. Porém, depois de muito confabular, ele e seus dois companheiros, a atriz ainda em ascensão Kathy Selden (Debbie Reynolds) e seu colega de primeira hora, Cosmo Brown (Donald O’Connor”) encontram uma solução. Já que existe o som, eles podem retornar ao que tinham feito no início da carreira, e cantar e dançar músicas originais para entreter o público, mantendo a contação de histórias, tal como faziam os musicais de Nova York. A microfonação, nesse caso, seria feita externa aos atores, com alguns elementos de dublagem, aceita para privilegiar a dança. Na ficção do filme, assim, instituem o musical em cinema, e salvam tanto a eles como a parte da indústria, transformando o filme em “O cavaleiro dançante”. Neste contexto, após deixar Kathy em casa, pois na história ela é também seu par romântico, Don sente-se tão leve e feliz que, mesmo debaixo de chuva, começa a cantar e dançar, criando-se aí a cena mais icônica da história do musical em cinema.

Em que pese o abismo entre as interpretações e composições de “Cantando na chuva” e “Emília Perez” ou quaisquer musicais atuais, já que a canção título do filme é de tirar um arrepio até de quem, 70 anos depois do filme, assiste sabendo como ela é, aqui a discussão não é sobre a estética duvidosa dos musicais atuais e esplendorosa dos antigos. O tema é a inteligência artificial para a correção de problemas, e um equivalente surgiu naquele tempo: artistas do cinema mudo não tinham, necessariamente, a voz adequada para certos papéis no cinema falado. E a atriz que contracenava com Don como mocinha em “O cavaleiro duelante”, agora “O cavaleiro dançante”, não tinha voz para cantar e, mesmo falando, sua voz era irritantemente aguda.

Lina Lamont (Jean Hagen) é, a partir daí, orientada a simplesmente mexer a boca. Enquanto isso Kathy, que não está no cast do filme porque não é considerada à altura dele, mas é cantora, faz voz-over para dublar precariamente a artista inapta para o novo papel. A dublagem deixa de ser um complemento à captação externa do som e passa a ser uma malandragem da equipe. Um uso desonesto se mostrava possível com a dublagem: um artista famoso e querido do cinema mudo poderia ser facilmente adaptado para o musical, mascarando seu mau desempenho.

“O cavaleiro dançante” encanta a todos, quando lançado, mas todos se incomodam com a falsa voz de Lina, e os produtores têm de admitir que ela foi dublada, tendo de reconhecer o papel de Kathy Selden. Ela que, àquela altura, já está deprimida por seu não reconhecimento, e pela forma como, de primeira, Lina Lamont parece se consolidar como atriz de musicais, tendo a indústria fechado contrato com ela para mais filmes, antes de o público desconfiar da farsa.

A história de “Cantando na chuva”, como é o diferencial dos clássicos em relação aos filmes corriqueiros, reverbera na atualidade. O filme embusteiro que se consolida porque é aceito no clube dos produtores. A substituição de artistas para favorecimento de quem já está na indústria. A correção artificial dos problemas de desempenho, para manter grifes do cinema, a qualquer custo, nos principais papéis. Quaisquer desses problemas podem ser identificados em “Emília Perez”, seja o sucesso inicial baseado em publicidade e tapinhas nos ombros que escondem sua mediocridade, seja desprezo a artistas mexicanos para trazer as grifes de Zoe Saldaña e Selena Gomez, ou enfim o uso de inteligência artificial para corrigir os problemas de canto das atrizes, sobretudo de Karla Sofía Gascón, a protagonista.

A dublagem para artistas incapazes de cantar, em hollywood, foi descartada como ferramenta, primeiro porque grosseiramente falsa, segundo porque antiética. Mas a correção de som ficou, em alguma medida. Não há filme musical que não tenha um ou outro ajuste, assim como não há álbum de estúdio de qualquer músico que não o faça, sendo o desempenho pleno deixado para performances ao vivo, na música, ou para as óperas e musicais em teatro. O meio termo entre o artista dublado e o som ajustado deve ser encorajado no cinema. E  a inteligência artificial, obviamente, será uma ferramenta importante para enriquecer obras.

Seu uso deve ser pontual, para corrigir pequenos problemas ou enriquecer tecnicamente, sem retirar do cinema o seu aspecto humano. Ou senão, no longo prazo, vamos todos fazer produções completas em IA, transformando toda a indústria em estúdios de animação computadorizada, e transformando filmes com atores num fenômeno cult. Igual foi feito com o streaming musical e a mídia física, que hoje resiste em casas de vinis por aí, mas subjugada por uma indústria que rebaixou a qualidade artística e técnica da música. Não que o cinema já não tenha sido rebaixado para lucrar, mas aí é outra história.



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