No other land: os desabrigados da Palestina

Assistir a um filme sobre a Palestina é como retornar à Palestina, para mim. Eu, que lá estive por um mês em 2016, ainda me recordo de todo sofrimento e resistência em meio ao caos que marcam a vida daquelas pessoas, cujo infortúnio foi nascer no diminuto território que foi mais predado pelo ocidente nos últimos séculos. Hoje, quem representa esse papel de entreposto ocidental é Israel, antes fora o Reino de Jerusalém, no meio disso as metrópoles europeias mantendo suas colônias. Estas últimas que, ao fim, são a gênese do problema do Estado de Israel e a população palestina, aparentemente sem solução.

“No Other Land”, filme vencedor do Oscar 2025 na categoria Melhor Documentário Longa-metragem, fala sobre os desabrigados na Cisjordânia. Para quem não sabe, a Palestina não é reconhecida por Israel, que controla todo o território seu e deste Estado árabe vizinho, atuando com o exército para além das fronteiras, com incursões pontuais que desrespeitam a Autoridade Nacional Palestina, que, em tese, governa o país desde os Acordos de Oslo em 1993 (aquele, famoso, em que Yasser Arafat e Itzhak Rabin apertam aos mãos ante um Bill Clinton sorrindo-se, orgulhoso da “paz” que conquistara).

Quando eu estive na Palestina, em minha primeira noite, hospedado num albergue simples em Ramallah, Israel coordenou um ataque a um prédio comercial vizinho. Logo ao lado. O ataque foi à meia-noite, de modo que eu acordei e vi os soldados, cobertos até a cabeça, entrarem em fila por um corredor de fundos, que também era visto do albergue, mais adiante na passagem que a entrada para o edifício comercial. Lá, eles explodiram três bombas. A primeira foi o que tinha me acordado, depois mais duas. E foram embora. Pela manha, a rua estava tomada por fumaça, o prédio, incendiado, e rudimentares estruturas de bombeiros tentavam conter as chamas, que se espalharam por todo o prédio e, quando foram contidas, os esforços já tinham sido inúteis. Tudo se perdera, em diversas lojas, consultórios médicos, escritórios, cartórios etc, e no lugar alvo que, segundo disseram autoridades à imprensa, era uma casa de câmbio que guardava dinheiro para o Hamas. Ninguém confirmou se era verdade.

O ataque estava em toda a imprensa até outro dia mesmo, mas foi curiosamente apagado nos últimos anos, possivelmente para apagar rastros dos atos de Israel, após o início da guerra contra Gaza. Aqui, o relatório da agência diplomática palestina pode ser acessado aqui, sendo o ataque registrado na seção Ramallah Al Bireh, subseção ataques, ítem iii. 

Ainda quero escrever sobre o prelúdio da guerra, como eu chamo o período em que lá estive. Tenho diários daquela época, escritos in loco. Mas, aqui, vamos ao que interessa: o filme vencedor do Oscar, que confirma o que eu sabia por meu testemunho. “No other land”, aqui traduzido como “Sem chão”, conta a história de famílias que resistem às ordens israelenses de despejo, sob o argumento de que ali estão criando zonas de proteção militar. Na verdade, tudo se trata de especulação imobiliária, já que alguns palestinos vivem em terrenos vantajosos para agricultura e pastoreio e, portanto, têm suas chácaras visadas pelas campanhas para assentamentos israelenses na Cisjordânia. Mais uma vez, para quem não sabe, Israel, a fim de garantir o que crê ser sua soberania sobre os territórios palestinos, constrói condomínios sob proteção de ocupação militar dentro da Palestina, os chamados assentamentos, e expulsa os moradores locais ou para fora do país, ou para campos de refugiados que formam aglomerados populacionais ao redor de Ramallah, Hebrom, Nablus, Jenin, em algo parecido com as favelas brasileiras.

Com uma hora e meia de duração, o filme acompanha seus dois diretores, um israelense em terras palestinas e um palestino, acompanhando os desalojamentos feitos por Israel contra terrenos árabes por todo o país, enquanto colhe depoimentos de luta e resistência dos moradores. A imagem de tratores derrubando casas, em frente a mulheres e crianças chorando, e, antes, as de soldados israelenses pondo para fora os pertences, incluindo roupas e comidas, dos palestinos ali residentes, lembra as de invasões a favelas brasileiras pela polícia. A cada detalhe do sofrimento das pessoas, migrando até para cavernas, onde não podem ter suas casas derrubadas pelo governo, percebe-se a necessidade que o povo sente de organização, já que há muito a Autoridade Nacional Palestina não faz a defesa necessária das pessoas. Quando vê-se que, conforme a narrativa avança, os palestinos começam a se organizar com paus e pedras, percebe-se o que terminou por acontecer em 7 de outubro de 2023, com o ataque do Hamas a várias instalações israelenses, além de muita história contada sobre festa rave, kibutz, bebês e lá vai conversa, fatos sobre os quais jamais teremos precisão na apuração.

O que ocorre na Palestina, sim, está amplamente documentado, até por vídeos amadores de aspecto perturbador. Entretanto, a voz palestina segue sufocada, mas paulatinamente alcançando o grande público, como uma correnteza que já faz força sobre uma resistência de bambu. O surgimento de “No other land – Sem chão” já era salutar, mas ninguém imaginava que fosse vencer o Oscar. Premiado mundialmente, sequer tinha sido exibido em salas de cinema dos Estados Unidos, por ser considerado uma peça antissemita (pasmem, mesmo quando feita por judeu israelense). Entretanto, garantiu participação no prêmio ao ser exibido em festivais, o que conta como lançamento, e conquistou o prêmio graças aos votantes internacionais (ou seja, aqueles de fora da indústria norte-americana e inglesa), colégio que foi expandido nos últimos dez anos. Noutros tempos, sequer teríamos conhecimento deste filme.

Estar na Palestina é algo que marca a vida de uma pessoa. É o receio permanente de que algo lhe aconteça, seja porque você cai no olho do furacão e qualquer ataque israelense ou hostilidade palestina pode te pegar pelo ladrão, seja porque você é um estrangeiro ali e torna-se visado pelos israelenses, seja porque, no meu caso, sou etnicamente árabe e, sem meu documento, posso facilmente ser compreendido como palestino em terras israelenses.

E fui, mas aí é outra história. O que importa, agora, é que busquem assistir à hora e meia de destruição e diálogos dolorosos de “No other land – Sem chão”, para entender melhor o desastre que é ser palestino, nos últimos 80 anos.

 



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