
As personagens como fio condutor de uma narrativa
Uma das características mais destacadas dos meus livros por seus leitores é a profundidade das personagens e, sobretudo, o carisma de muitos de seus heróis e vilões. Não é preciso avançar muitas páginas de “A Lenda de Florine” para que Véquios Verlóglien, Bia Verlóglien, Marcus Lian e o Velho Guru, independentemente do papel de protagonismo ou antagonismo que ocupam na narrativa, conquistem a simpatia do leitor que, avidamente, avança as páginas para saber os desenlaces de suas ações e decisões.
Mas qual o meu segredo ou inspiração para chegar a esta característica das minhas histórias?
A resposta passa por alguns dos meus principais inspiradores, cujo atributo mais marcante de suas histórias é vincular à personagem, não importa se “boa ou ruim”, na mais rasa acepção dos dois termos, traços de humanidade que confiram às mesmas identificação imediata com muitos leitores, que aguardam os desdobramentos dos fatos que as envolvem como se esperassem pelos acontecimentos de sua própria vida. A capacidade de criar este tipo de identificação é possível alcançar, claro, com muita leitura e conhecimento sobre personagens, mas também com a observação sobre as próprias pessoas do nosso dia a dia, as personagens da nossa vida real.
Recorrendo aos clássicos da literatura, nos primórdios do gênero narrativo, o poeta grego Homero e o latino Virgílio já eram capazes de, por meio de grandes arquétipos retratados nos épicos Ilíada, Odisseia e Eneida, tratar de valores humanos tais como o caráter de Heitor, a obstinação de Ulisses e Eneias, a fidelidade de Penélope, a sagacidade da rainha Dido e a ingênua truculência do ciclope Polifemo. Mas é na idade moderna, já sob as luzes do cristianismo e seus valores morais, que o dramaturgo britânico William Shakespeare revoluciona a criação de personagens e o estabelecimento de laços com o expectador através do drama de caráter, fio condutor de suas tragédias.
Diferentemente da tragédia antiga, em que o destino inexorável conduzia as personagens ao desfecho que provocava a catarse e a reflexão nas pessoas, na tragédia moderna britânica os protagonistas caem por suas escolhas, a partir de decisões equivocadas tomadas com base nas inúmeras e mais humanas falhas de caráter. Os ciúmes de Otelo, a neurose de Hamlet, a tentação pelo poder de Macbeth, a disputa familiar entre os Capuleto e Montecchio, a vaidade do Rei Lear, em todas as tragédias shakesperianas o fio condutor é o caráter. No âmbito do cristianismo e da ontologia do livre arbítrio traçada por Santo Agostinho, este é o atributo primordial às personagens de toda narrativa para que sejam marcantes para o leitor e, desta forma, conquistem sua atenção ao serem falhos e humanos.
Neste sentido reside a minha crítica a muitas personagens de Harry Potter, simples em suas decisões e tomadas pelo maniqueísmo e pela solidez dos arquétipos que representam (Harry o herói puro e destemido, Hermione e Rony os companheiros dedicados e abnegados, Dumbledore o velho sábio, Voldemort o vilão cruel, impiedoso e movido pelo desejo de reinar soberano sobre todos). No que pese o fato de ser a história que me iniciou na literatura e me impeliu a começar a escrever, aos poucos foi a característica da qual me distanciei para criar em Málkian e In Ventis personagens mais volúveis e, ao mesmo tempo, profundas, as quais o leitor vai rapidamente descobrindo em seus anseios e motivações.
Quem é Marcus Lian? O vilão impiedoso ou a vítima de uma perseguição étnica e religiosa sem precedentes em Málkian? E Lorena? É ela a órfã que busca redimir o pai e restabelecer a ordem em Málkian, ou uma jovem movida pelos mesmos desejos de Lian e protegida pelo incompleto arcabouço moral de seu tempo? Bia Verlóglien é a irmã invejosa ou a mulher discriminada? Véquios é o jovem destemido e de nobres valores, ou o caçula mimado que sempre pode errar, a quem foi dado o que foi negado a Bia? São os questionamentos suscitados quanto às personalidades que retrato em Málkian e tocam, diferentemente, a cada leitor. Desta forma, cada um se identifica com quem mais lhe apraz e faz a sua própria leitura dos valores e da moral vigentes em Málkian, que movem a narrativa épica que escrevo.
As personagens citadas são apenas as do livro um. Mas, do segundo livro em diante, uma série de novas questões é levantada, diversificando as discussões a aprofundando as já existentes, tão parecidas com as que temos aqui, na nossa vida real.
O laço de identificação com base no conhecimento de outras experiências narrativas bem sucedidas, assim como o conhecimento sobre as nossas inquietudes atuais, são a minha referência neste aspecto, que me conduziram a criar Markus Lian, Bia Verlóglien, Lorey Anderson, Hennet e o Velho Guru.
E assim elas continuarão a surgir na minha narrativa.