
Angra, Shakespeare e a tragédia de caráter
Em Málkian, minha série infanto-juvenil, optei por seguir os passos da tragédia moderna e discutir o caráter e o livre arbítrio das personagens, ao invés de recorrer à receita do arquétipo inaugurada pelas épicas grega e latina, ainda hoje a base dos romances deste segmento. No universo musical, o heavy metal flerta bastante com a literatura infanto-juvenil, desde os tempos em que Led Zeppelin referia-se a Tolkien em canções como Misty Mountain Top, chegando esta relação ao seu auge durante o power metal noventista, em que bandas como Blind Guardian, Rhapsody e Avantasia basearam-se na fantasia infanto-juvenil para compor suas canções.
A banda brasileira Angra, no entanto, em 2010 fez uma opção ousada e recorreu a um texto de Shakespeare para escrever um de seus álbuns mais subestimados, mas ao mesmo tempo muito interessante, extraordinariamente bem composto e de excelente adaptação musical de uma das principais peças do dramaturgo elizabetano: “A Tempestade”.
Neste drama, que enseja todos os elementos da tragédia, o nobre Próspero vive isolado numa ilha, junto à sua filha, Miranda, após ser traído pelo irmão, Antônio, e banido de Milão. Utilizando-se de forças sobrenaturais, ele invoca um espírito do ar para fazer uma tempestade e trazer à ilha o irmão e sua comitiva, que atravessam o Mar Mediterrâneo. Ele espera vingar-se de Antônio, mas vê-se surpreendido pelo fato de que Miranda se apaixona por Ferdinando, filho do Rei de Nápoles e integrante da comitiva de seu irmão, e na obrigação de escolher entre cumprir seu plano e enlouquecer ao irmão e à comitiva naquela ilha esquecida, ou permitir o amor dos dois jovens. Traçados todos os elementos da tragédia, o leitor é levado a inferir que Próspero cumprirá com sua obstinação e, do amor de sua filha com o convidado de seu inimigo, sucederá alguma tragédia que terminará por vitimar ao próprio pai da garota.
Entretanto, no clímax da história, Próspero decide perdoar os inimigos em nome do amor de sua filha. E, desta forma, não repetindo o erro de Capuleto e Montecchio em Romeu e Julieta, permite a felicidade dos jovens e redime a si e aos seus inimigos, retornando em segurança a Milão para assumir seu ducado. Por meio deste desfecho surpreendente para os padrões da época, Shakespeare reforça o quanto o caráter e as escolhas definem o destino dos seres humanos, segundo o entendimento ontológico do cristianismo e dos homens de seu tempo.
Na letra da canção Ashes, do álbum Aqua, que fecha o disco e retrata justamente a decisão final de Próspero, o letrista do Angra fala do perdão e reproduz uma máxima de Shakespeare que revela algo que eu trouxe como pedra fundamental para minha criação de personagens.
Ouça e depois leia:
Lie at mercy all my enemies
I’ll forgive and leave across the sea
We are such a stuff as dreams are made on
Set me free
I’ll carry on! Carry on!
This end is my start
We are such stuff as dreams are made on
And I’m gone
“We are such a stuff as dreams are made on”, ou “Nós somos feitos da mesma material que os sonhos”, é uma metáfora sobre as expectativas que criamos sobre a vida e seus acontecimentos e sobre como, a partir do que vislumbramos em nossas mentes, materializamos atitudes que nem sempre são as corretas, do ponto de vista dos efeitos bons ou ruins que colheremos a partir delas. Próspero foi sábio. Boa parte das demais personagens de Shakespeare, não.
Em Málkian, muitos não o são, como Marcus Lian, Bia Verlóglien, Alzen I e mesmo heróis como Gregório Andérsia. Outros, como o Velho Guru, Tobi Pope e Octavius Questus (que surgem no livro II), são mais sagazes e muito responsáveis por conduzir a narrativa a um desfecho melhor, em muitos aspectos, do que se isto dependesse dos próprios protagonistas.
Está é a adorável inconstância e falibilidade das personagens malkianas, e ao mesmo tempo o que lhes proporciona tanta aceitação.