A narrativa épica como justificativa da conquista militar

O embate entre civilizações, e mudanças de poder no curso da história, está presente no imaginário de cada pessoa que estuda e ama história e literatura. Muitas vezes o antagonismo existente entre diversos povos ocidentais, no curso do tempo, determinou a forma como foi contada a “história oficial”, e por isso muitos fatos e personagens importantes foram negligenciados ou mesmo subjugados e vilanizados. Tornaram-se o antagonista do “herói” que, de fato, era apenas o conquistador.

Cito aqui dois momentos importantes de nossa história em que isto ocorreu, ambos na antiguidade que alicerça a história do Império de Málkian, minha série infanto-juvenil: a conquista dos Gregos sobre Tróia e a dos romanos sobre os bretões. Em ambos os casos, a história oficial, utilizando-se de importantes nomes da literatura antiga, tratou de perpetuar o conquistador como herói, ao passo que ao conquistado coube, no primeiro caso, o papel de valoroso adversário que caiu na ardilosa armadilha dos gregos, e no outro simplesmente o estigma de povo justamente aculturado em nome da civilização.

Grécia, Tróia e Roma

A conquista dos gregos sobre Tróia é retratada de forma diferente por dois autores da poesia clássica. No épico “Ilíada”, de Homero (sobre cuja identidade há pouco consenso, sendo mais aceita a hipótese de que “ele” tenha sido uma alcunha para vários autores gregos no curso do tempo), os troianos são retratados como o oponente de valor que não se furta a combater e defender a cidade natal, mesmo sob a inclemente campanha grega e seus heróis ajudados pelos deuses. Séculos mais tarde, na epopeia “Eneida”, do romano Virgílio, concebida com fins políticos de sustento da autoridade moral do imperador Otávio Augusto sobre os cidadãos de Roma: os troianos seriam os heróis que, injustamente abandonados pelos deuses, buscariam numa nova terra a continuidade de suas vidas e chegariam ao Lácio, onde nasceria o Império. A suposta ascendência troiana dos romanos justifica, no épico latino, a conquista dos gregos pelos romanos, e o papel civilizador assumido por Roma perante toda a Europa.

Neste caso, a percepção de que os vencedores no curso da história contam seus feitos da forma que mais lhes favorece, e deixam uma marca enviesada para a posteridade, foi de tal forma compreendida pelo imperador e por seu poeta que, muito depois da obra de Homero, o épico de Virgílio tornou-se a mensagem política de que cabia a Roma o papel de conquistar os povos não civilizados (praticamente todos, à exceção dos gregos). E, em relação à Grécia antiga, a conquista era simplesmente um “acerto de contas”. Eneida reconta a história de Troia, concedendo aos troianos um novo e redentor capítulo.

Roma e a Bretanha

Por outro lado, o papel civilizador dos latinos diante dos germânicos e bretões coloca Roma (e portanto os “troianos”, na duvidosa concepção dos césares), agora no papel de detentor do poder de contar a história. Um período de conquista para os romanos e de perda da soberania de uma das culturas mais ricas da Europa na antiguidade, a dos celtas, no prisma dos latinos foi uma etapa na missão de civilizar assumida pelos imperadores. Em Tucídides e para os demais historiadores romanos, Roma era a luz do mundo, que deveria tocar todos os cantos da humanidade.

Para os bretões, no entanto, aquilo significava a perda da liberdade e de um modo de viver, independentemente do papel que o império exercia no desenvolvimento econômico e nos inúmeros avanços na qualidade de vida dos que vivam sob suas leis. A luta pela liberdade dos povos da Bretanha, no entanto, está retratada em diversas obras da literatura britânica, em especial do século XX, já permeada por muita imaginação e idealização da cultura celta pelos romancistas ingleses em busca das origens da Grã-Bretanha.

Em “As Crônicas de Artur”, de Bernard Cornwell, é narrada a saga dos últimos bretões pela liberdade, não mais ante os romanos, mas diante dos saxões e dos cristãos, estes últimos que se apossam da condução espiritual dos povos da ilha, como um último legado deixado por Roma aos bárbaros que ali viviam. Da perspectiva dos bretões, a chegada do cristianismo é tão ou mais preocupante do que a dos saxões, pois significa não apenas a perda da soberania, mas a aculturação e a perda da identidade.

Hoje, poderíamos comparar esse tipo de argumento narrativo com o que se faz com árabes, os incivilizados, fánaticos religiosos, inimigos do ocidente. Ou com os russos, os truculentos da terra gelada, incapazes de bem conviver com o mundo livre. Num passado recente, também foi foito em relação a um suposto primitivismo de negros e indígenas, haja vista o mais infame de todos os filmes hollywoodianos, "O nascimento na nação", sobre o qual ainda pretendo falar.



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