Villa-Lobos, maestria, horizontes e ostracismo do Brasil

A diversidade musical brasileira faz com que, possivelmente, esta seja a arte de maior destaque internacional do Brasil. Boa parte dos gêneros de maior sucesso mundial já tiveram representantes brasileiros de primeiro nível, como Sepultura no rock ou Tim Maia e Ed Motta na soul music. Isso sem falar no gigantismo da Bossa Nova e de Tom Jobim, gênero nativo assimilado por ninguém menos que Frank Sinatra, o maior cantor da história dos Estados Unidos, que praticamente pediu licença para participar do movimento Bossa Nova.

Naquele mais elitizado e musicalmente exigente de todos, a música erudita, os destaques nacionais são Carlos Gomes, autor da ópera “O Guarani” no século XIX, e Heitor Villa-Lobos, autor de diversas peças musicais no começo do século XX. Este último é ainda mais grandioso que Gomes, e por isso é tema deste artigo.

Isso porque Villa-Lobos foi mais que um competentíssimo compositor, como o maestro se Don Pedro II fora no nível de quaisquer dos europeus de seu tempo, como Verdi ou Rossini. Villa-Lobos, que nivela-se aos contemporâneos Debussy e Stravinsky, ergueu-se como um monumento da música erudita por inovar e colocar o gênero dentro do modernismo. Incorporando elementos brasileiros ao tradicionalismo dos cânones europeus, rompeu os limites do romantismo de então para brincar com a própria música.

Bachianas: a obra magna

A principal obra de Villa-Lobos são suas nove composições em homenagem ao músico barroco alemão Johann Sebastian Bach, do século XVII, que teve em seus trabalhos notável essência espiritual, elevada e de cadência e métrica variáveis. Porém, se vivo estivesse, teria visto-a se tornar uma obra lúdica a partir das anteriores diretrizes sagradas.

Bachianas evoca momentos de profunda emoção, mas também de brincadeiras e reinterpretações à brasileira da obra de Bach. Nalguns momentos, atinge um dos processos mais difíceis da música, a manifestação da mimese, que é quando o compositor consegue tirar dos sons dos instrumentos a sensação real de uma imagem, ou ambiente, de um sentido estimulando outros para além da imaginação.

No princípio da Bachiana 1, nos deparamos com uma obra agitada e que se espalha nos ouvidos do ouvinte com detalhes, quebras e minúcias que são como um sorriso, depois caindo num segundo movimento de absoluta contemplação, lembrando o aprofundar de uma noite. Tudo como se fosse o dia e a noite de um ser humano, ou de um lugar, ou de uma floresta.

Logo após a primeira peça, chega-se ao mais lúdico e alegre dos segmentos das Bachianas. Na etapa 2: o trecho “O trenzinho caipira” leva o ouvinte direto para uma maria-fumaça, sem tirar nem pôr. E isso tem um sentido geral na produção: do bucólico da Bachiana 1, o dia e a noite em contraposição, evocando o homem simples ou um lugar no campo, Villa-Lobos leva o ouvinte à modernidade, o que deve acontecer em razão do movimento a que pertence: a corrente artística que entendia que o presente deveria ser antropofágico em relação ao passado: absorver dele o que há de melhor, mas descartá-lo no restante para processar coisas novas e locais. O sagrado de Bach dá lugar ao moderno, e as obras dedicadas a Deus, agora, louvam o poder das máquinas.

A Bachiana 5 é a mais famosa e exerceu sua influência do outro lado do mundo, no Japão, numa obra da cultura pop conhecida internacionalmente e que será apresentada adiante.

Ela, com segurança, é isoladamente a maior peça de Villa-Lobos. Um lamento de uma solista, soprano, descreve a melodia de uma agonia sem fim, porque os meandros da melodia vem e vão numa ordem que dá circularidade ao sofrer. Por outro lado, essa melodia tem sentido, e progride para tons mais altos que intuem a inavistável libertação.

O ciclo da angústia humana. Do vazio ante a perda do sagrado na modernidade, um Villa-Lobos critica seu argumento em plena consecução da obra.

Com esse movimento faz diálogo, com clareza, a trilha sonora de “Cavaleiros do Zodíaco”, com a música “Sad Brothers”. Nela, tocada em momentos dramáticos de quase morte que leva à superação no contexto do enredo do anime, o mesmo desenho musical de Villa-Lobos se manifesta mimeticamente. Ou seja, da angustia e da tristeza à libertação.

Outras obras são profundamente inspiradas pelo brasileiro, embora não um tributo direto, como o tema do Santuário de Atena: “Sanctuary, Precept of Death”. Ou "Glide, Pegasus", aproximável justamente ao "Trenzinho Caipira".

Veja:

Trecho original:

Trecho de “Cavaleiros do Zodíaco":

Trecho original:

Trecho de “Cavaleiros do Zodíaco":

O prejuízo do desconhecimento

O Brasil já construiu um sem-número de artistas e cientistas de dar inveja a muitos países ricos. Entretanto, muitos de seus maiores cérebros permanecem nas sombras, como Villa-Lobos, conhecido apenas por um núcleo restrito a admiradores do gênero. Na cena internacional, é lembrado, mas não à altura de seus contemporâneos Debussy e Stravinsky. É um nome para acadêmicos, estudiosos da história e dos repertórios da música erudita.

O projeto educacional brasileiro aplica-se a discutir pautas sociais, o que é necessário, mas as grades curriculares sacrificam o ensino clássico. Para além do ideológico, existe também o pragmatismo das escolas e cursinhos preocupados exclusivamente com aprovações em vestibulares, o que destrói qualquer planejamento em se ensinar sobre Villa-Lobos, Gonçalves Dias, ou mesmo Padre Landell de Moura e Oswaldo Cruz no campo científico.

Por isso, ofereço aqui o privilégio de experimentar este compositor que é orgulho nacional, tal como Cândido Portinari, Clarice Lispector, Gonçalves Dias, Ayrton Senna, Fernanda Montenegro e Fernanda Torres, Walter Salles, toda a turma que vem se renovando e só fica atrás Alberto Santos Dumont, Machado de Assis, Tom Jobim e Pelé. Bem, para superar esses, Villa-Lobos deveria ser Mozart, Beethoven ou o próprio Bach. O que não foi, e não é demérito. Ou seria demérito ser Maradona, Messi, Ella Fitzgerald ou os Irmãos Wright (tudo bem, esses sim).

 



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