Temple of Shadows: o clássico erudito do rock brasileiro

Recentemente, completou 20 anos o mais erudito álbum do heavy metal brasileiro: Temple of Shadows (2004), do Angra, levou a banda a uma temática muito clichê do gênero, mas com a maestria da liderança de Rafael Bittencourt na composição da maior parte das músicas. Isso retirou o álbum das tradicionais lutas de espadas, inimigos divinos ou ferozes, demônios de fogo, dragões etc, mas situá-lo no âmbito das cruzadas.

Ainda assim, não as cruzadas das feéricas batalhas contra muçulmanos, apenas, mas como momento em que cristãos e muçulmanos entraram em crise de fé, ao perceberam virtudes e crueldades do seu grupo e daquele tido por inimigo. Em 12 faixas de absoluta mistura de recursos e gêneros musicais, forte apelo emocional e guitarras aceleradas, “Temple of Shadows” foi um marco que, como toda a carreira do Angra, ainda carece de reconhecimento.

Um homem em crise de fé

O álbum conta uma história, tal como o dito “power metal” já tinha feito com os álbuns de “Rhapsody of Fire” e “Avantasia – The Metal Opera”. Nesta história, um inominado protagonista, cognominado “Shadow Hunter”, é designado para as cruzadas e, mais que lutar, assume o dever de espalhar pela Terra Santa os ideais do cristianismo, o que está na faixa 2, “Spread of Fire”, uma das mais marcantes do álbum. É a primeira canção do disco, que conta com a faixa 1 apenas como uma introdução instrumental.

Contudo, ele entre em crise imediatamente ao se deparar com a guerra, questionando-se o quanto o bem e o mal estão ambos disfarçados em meio ao conflito, o que surge na faixa 3, “Angels and Demons”, e suscita reflexões existenciais profundas nas faixas 4 e 5, “Waiting Silence” e “The Whishing Well”. Ainda assim, ele vai para sua grande batalha, na única canção que se emparelha às dos tradicionais álbuns épicos das outras bandas de “power metal”. “The Temple of Hate”, faixa 6, a música mais pesada do álbum, com participação do ex-vocalista e guitarrista do Helloween Kai Hansen, é uma mimetização perfeita da confusão e perturbação da guerra. E tem o papel fundamental, em seu tom e composição, para a transferência do eixo narrativo do álbum.

Isso porque, na sequência, a faixa 7 é uma das mais belas do disco: “The Shadow Hunder”, em que o protagonista, ao som de uma música leve com uma suave introdução em flamenco, é recebido por um comandante inimigo e tem dele grande hospitalidade. Com uma letra descritiva e emocional, assim como o tom dado à canção, é o ponto alto do disco.

Que não perde fôlego na suave faixa 8, “No Pain For The Dead”, em que há a alusão a um alaúde à Dom Dinis na introdução e o apelo vocal de Sabine Edelsbacher para fazer uma reflexão sobre a morte. Depois vem “Winds of Destination”, faixa 9, mostrando a continuidade da guerra e com participação de Hansi Kürsch, vocalista da consagrada Blind Guardian, um petardo que fala sobre a continuidade da guerra, a despeito das mudanças pelas quais passa o Shadow Hunter; e as geminadas “Sprouts of Time” e “Morning Star”, faixas 10 e 11, as duas canções suaves que mostram o reencontro moral do protagonista, que abandona a guerra e quer lutar pela fraternidade entre os povos.

A sequência traz uma das joias do disco “Late Redemption”, faixa 12, em que o lamento da morte do protagonista, sem alcançar seus objetivos de guerra e de paz, ainda assim será sua redenção porque suas intenções ficarão marcadas na eternidade de sua alma e no legado para os que ficam. Para ecoar suas reflexões, é convidada a voz de Milton Nascimento, que em dueto com o vocalista do Angra à época, Edu Falaschi, faz uma das mais belas composições do heavy metal mundial.

O álbum se encerra com Gate XIII, uma instrumental que percorre momentos melódicos principais de todas as 12 canções que a antecedem.

Que lugar este álbum ocupa?

Temple of Shadows é um lindo álbum, belíssimo e completo como pouquíssimo no heavy metal. A questão é: é um clássico? Nacionalmente dá para dizer que sim, porque é sempre lembrado como demonstração de maestria na composição do Angra. Mas, pela sua complexidade, nem mesmo na banda ele deixou legados. Em geral, em paralelo com seus contemporâneos “Ritual” (2002) e “Reason” (2005), do Shaman, ambos são mais universais que Temple of Shadows, e o primeiro um clássico mais sólido.

O grande problema, porém, não é esse. “The Dark Side of The Moon” (1973), do Pink Floyd, ou “Thick as a Brick” (1972) também são pouco palatáveis, e ainda sim são clássicos do rock mundial. A grande questão é que a indústria fonográfica brasileira, rica em dinheiro mas pobre em projeto cultural, não consegue abraçar um disco que, em sua complexidade, não produza um grande hit, uma trilha sonora para novela – como foi com Ritual – ou participações na TV. O álbum foi mal divulgado na TV, que à época tinha contratos mais claros com o Shaman, frequente à então líder de audiência entre os jovens MTV.

Sem repercussão nacional, a internacional fica limitada, numa época em que o Japão, que acolheu o Angra em seus primeiros anos, já tinha sua indústria fonográfica voltada para a cena própria do rock, hoje uma das mais potentes e a mais inventiva do mundo.

 



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