O que não esperar do Conclave? Assista ao filme

O Conclave, evento que elege o novo Papa, começa nos próximos dias, previsivelmente nesta quarta-feira (7). O acontecimento sempre foi repleto de mistério e teorias da conspiração, visto que ocorre a portas fechadas – como diz o nome “com chaves” – e os seus participantes fazem voto de silêncio sobre o que ocorre entre as paredes da Capela Sistina, onde é realizado. Entretanto, sempre alguém dá com a língua nos dentes, secretamente, sob risco de excomunhão, e assim sabemos mais ou menos o que ocorreu em cada um.

Para o desapontamento de todos, nunca aconteceu algo mais que discussões sobre acertos entre os mais conservadores e os mais progressistas, a fim de escolher um cardeal que represente mais ou menos cada um. O Papa se revela mais alinhado a um grupo depois de eleito, muitas vezes surpreendentemente, como o próprio Papa Francisco, que se tornou um ícone da esquerda, mas fora silencioso ante os massacres do regime militar da Argentina.

Portanto, todo tipo de histórias mirabolantes sobre o Conclave são fantasia, e assim ocorreu com o filme de 2024, dirigido por Edward Berger – vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional por “Nada de novo no front” (2022) – sobre livro homônimo do jornalista britânico Robert Harris. Filme do qual vamos falar agora.

Um homem sem fé e a busca de poder (sem spoilers)

O filme conta a história do cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), um britânico em crise de fé, que conduzirá um conclave conturbado, com disputas entre alas da Igreja italiana, uma ultraconservadora e outra progressista, setores da Igreja africana com seus sincretismos e conservadorismos próprios, e um estranho cardeal de última hora, chamado Benítez e ultraprogressista, mexicano que servia à Igreja como arcebispo de Cabul, no Afeganistão. Seu bispado tinha esta sede conhecida apenas pelo Papa, para não chamar a atenção, e portanto ele só consegue participar por uma recomendação por carta deixada pelo pontífice morto.

Daí se desenha uma disputa ferrenha que envolve debates acalorados, muitas vezes raivosos, dentro e fora da Capela, quando os cardeais deixam o santuário para dormirem e fazerem refeições na Casa Santa Marta. O italiano Bellini e seu compatriota Tedesco rasgam hostilidades um contra a forma de pensar a Igreja do outro. Tedesco, um radical anti-imigração e aproximação com mulheres e população LGBTQIAPN+; Bellini um moderado progressista, temeroso de que a Igreja perca apoio com algum tipo de retrocesso.

Lawrence, nesse meio e sem fé, se vê perdido e só recebe o apoio pessoal do estranho Benítez, tendo de resolver os problemas sem saber sequer quem é este único que lhe estende a mão.

Delírios sobre Vaticano (com spoilers)

O argumento inicial da história já guarda imprecisões com o que sabemos de todos os conclaves. A polarização entre Bellini e Tedesco emula elementos da nossa política civil atual: Lula contra Bolsonaro, Trump contra democratas etc.

Não é bem assim que se avalia o Conclave, onde a maioria dos cardeais quer resolver tudo logo, ninguém quer ser papa – imagina: você nem volta pra casa nunca mais, sua vida vira de cabeça para baixo, você já tem 78 anos. Não é tão simples – e tudo que mais se discute é a proteção do rebanho da Igreja, que sangra desde o fim do século XIX e o estabelecimento da modernidade, com o isolamento entre os indivíduos, e portanto perda do senso de coletividade. Conjunto de coisas que abre caminho para o protestantismo. Isso além de, na Europa, o fortalecimento do islã como fenômeno da imigração e da pouca taxa de natalidade dos Europeus. Estes extenuados pelos tempos modernos e pouco dispostos a manterem compromissos heteronormativos e reprodutivos em nome da preservação da fé, o que os muçulmanos fazem bem.

E, em “Conclave”, esse é o discurso base de Tedesco, que é vilanizado pelo filme. A forma raivosa com que Tedesco se apresenta, como um político do nosso Congresso, não se apresentaria no Conclave, um evento marcado pelo silêncio e conversas ao pé do ouvido. Bellini é um amedrontado, mais que outra coisa, e perde a mão da liderança progressista quando começa a se apresentar o nigeriano Adeyemi, moderado à africana, isto é, com muito discurso social e postura implacável em questões morais.

O problema: Adeyemi teve um caso com uma mulher durante a juventude, quando já era padre, e o boato é potencializado entre as freiras que os servem na Casa Santa Marta, de modo que sua crescente candidatura desmorona. Ascende o cardeal Litgow, canadense, sabidamente um corrupto, o qual deve ser tirado do caminho o mais rápido possível. Lawrence tenta colocar um pouco de sabedoria e razoabilidade nisso, mas aos poucos é Benítez que oclusa Lawrence. Ele, de confidente do chefe, passa a balizador moral da eleição.

A derrubada de Litgow acontece concomitantemente a um ataque terrorista contra os telhados da capela, o que desespera os cardeais, desencadeia um discurso de Tedesco racista e xenófobo – coisas que andam muito juntas – e abre espaço para uma resposta profundamente humana de Benítez, que vai se revelando, ao longo do filme, uma personagem absolutamente superficial. Se todos são complexos ou por falta de fé, ou por covardia, por escândalos sexuais, ou por reacionarismo, por que ele, Benítez, não?

A resposta vem ao final. Estapafúrdio.

Quando fazem a última votação, a sombra do atentado e as palavras lucentes de Benítez fazem com que os cardeais o escolham Papa. Ele escolhe o nome de Inocêncio IX, mas é revelado, de última hora, que ele não é heterossexual. Sim, descamba pra isso. Mensagem bonita e necessária como moral, péssima no argumento da obra, pela repetitividade do assunto e a forma indiscriminada como é colocada em qualquer história. Benítez, na verdade, é intersexo, e não se sabe se pode assumir a Igreja, já que a informação está nas clínicas que frequentou e fatalmente a informação vai vazar assim que for apresentado. O desfecho fica aberto, com a consternação de todos os cardeais.

O que é verdade?

O conclave é um evento de debates silenciosos e escolhas graduais. Embora a imprensa aponte os papáveis, a própria mídia indica tantos nomes que sabe que pode acertar, já que apostou em todos os cavalos. Mesmo assim, às vezes erra. Portanto, a ideia de um Bellini e um Tedesco puxando os cabelos um do outro para elegerem-se Papa, o coração do filme, tem quase nada de verdade. Nomes como os atuais Parolin, Erdo, Tagle e Zuppi são muito mais os balizadores do real Conclave que começa: aqueles que serão ouvidos e ajudarão a colocar nomes. O nome deles próprios pode surgir, mas, tradicionalmente, não da parte deles mesmos em favor de si. É contra a moral do Conclave apresentar-se candidato.

O africano, que teve filhos com uma jovem e a abandonou, chega a ser um acinte aos africanos. Por que logo o africano era um sujeito sem responsabilidade eclesial e reprodutiva dessa maneira? “Ah, África, aquela zona lá, todo mundo transa e pega AIDS etc!”, parece a justificativa do filme. Com toda a cultura identitária, parece que americanos e europeus ainda não entenderam bem o imperialismo.

O homem sem fé, como Lawrence, dificilmente estaria ali, após 50 anos de ordenação desde padre. Mas, supondo como elemento tardio em sua vida, não seria um fator de crise a ponto de justificar um psicólogo mexicano vindo do Afeganistão, o qual ele nunca viu na vida.

Por fim, o cardeal intersexo eleito Papa não é um problema em si. Homossexualidade seria, isso é óbvio, quer gostemos ou não. Intersexualidade, com todos os preconceitos que o grupo sofre, não toca a lógica de comportamento, portanto teologicamente não se interpreta por pecado, e não interessa à Igreja para fins de ocupação de cargos ou recepção de sacramentos. Grosseiramente comparando, era como se ele revelasse que é surdo e estava o tempo todo de aparelhos, ou que tem dislexia e não consegue ler. Qualquer coisa que, no catolicismo, interprete-se da ordem da naturalidade. Que fique claro que não se está discutindo o entendimento civil disso, mas teológico e moral católico.

E isso ganhou Melhor Roteiro Adaptado

A vitória de “Conclave” para Melhor Roteiro adaptado no Oscar mostra o quanto o prêmio é privilégio de filmes anglófonos, especialmente norte-americanos e ingleses. Descompromissado com a realidade de um evento de pouca dinâmica cinematográfica, aproxima-o de uma eleição norte-americana para criar um suspense político à “Frost x Nixon” de Ron Howard (2008), entregando um frankenstein de clichês sobre política e Igreja que não faz jus a um filme que venceu outros adversários débeis na noite do prêmio, mas viu preteridos “Ainda estou aqui”, “A substância”, “Robô selvagem” – o qual critiquei muito, mas tem grande roteiro.

 



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