
Tomates Verdes Fritos e o feminismo em 1991
O que se celebra em toda data voltada ao debate dos problemas das minorias, como este 8 de março, é, hoje, a fúria identitária das mídias sociais. Se no passado o Dia Internacional da Mulher era tratado mais como um dia romântico do que um dia para debates dos problemas que incidem sobre este grupo social, o que estava errado, hoje o pêndulo foi para o outro lado e a data se tornou um festival de ataques e criminalização geral dos homens, além de achaques às mulheres que discordam desse paradigma. Isso ao longo de mais ou menos 36 horas que somam as 24h do dia 8 mais uma prequela no finzinho do dia 7 e uma rebarba no começo do dia 9.
A arena deixou a platitude da TV aberta para ser o tiroteio das mídias sociais. Sem mais as propagandas ao som de “Tu és divina e graciosa, estátua majestosa do amor”, mas vociferações e ironias que poderiam estar ao som de uma declamação de Augusto dos Anjos, “o beijo amigo é a véspera do escarro, a mão que afaga é a mesma que apedreja. Escarra nessa boca que te beija.” A caravana da história passa e o acumular de erros sempre conduz a acertos que levam a novos erros, falhos humanos que somos, até que em séculos nos percebamos melhores do que éramos, mas sem alguns bens que tínhamos séculos atrás e nos fazem falta. Não fosse isso, não seríamos fascinados pelo imaginário medieval ou cenários vitorianos. Ou não teria ocorrido o renascimento.
Diante disso, é sempre bom lembrar “Tomates verdes fritos”, filme de 1991 estrelado por Kathy Bates, que conta um paralelo de duas histórias: a de Evelyn (Kathy Bates), a mulher fora dos padrões que vive acuada e sem autoestima, perdida num casamento em estado de inércia, que se encontra por acaso com Nanny, uma senhora que lhe conta a história de uma garota chamada Igdie Threadgoode; e, portanto, o flashback com a história passada desta Igdie, uma garota dos anos 1950 no Alamaba, que ajuda sua amiga Ruth Jamison a enfrentar a morte prematura do irmão, atropelado por um trem, e uma sucessão trágica de fatos que dela advêm, culminando num casamento por conveniência que termina em violência doméstica e desquite, passando o marido a persegui-la até que, misteriosamente, desaparece e é dado como morto.
Devido à conturbada separação de Ruth, a culpa recai sobre ela, que vive pacatamente com o apoio de Igdie, tocando uma lanchonete que serve, como sua especialidade, uma milanesa de tomates verdes, os “fried green tomatoes” ou “tomates verdes fritos”. A partir daí, será retratada a luta de Ruth para ser reconhecida como vítima e não algoz do marido violento, em pleno Alabama dos anos 1950. Igdie, que é uma menina completamente fora dos padrões, muito mais identificada com o arquétipo dos meninos, tem insinuado um sentimento de amor por Ruth, embora suprimido em razão do tempo e do reconhecimento da heterossexualidade da amiga. Ainda assim, o filme deixa isso quase claro, mas não declara.
Isso tudo, embora tome a maior parte do filme, é um flashback, porque o tempo presente é o de Evelyn e Nanny, a senhora, retirada num hospital, que narra a história do passado. Nanny identifica os problemas e angústias de Evelyn, e faz da história de Ruth e Igdie um fator de motivação para a nova amiga, que passa por um processo de transformação. Gorda, não emagrece, mas alcança a aceitação de seu corpo, sai do casulo antissocial a que se recolhera, passa a dirigir melhor seu carro e desafiar as pessoas que a menosprezam. Estabelece uma relação melhor com o marido, que, embora seja um homem sem grandes atrativos e virtudes, polariza narrativamente com o marido de Ruth, ao ser mostrado com um homem bom, apesar de provinciano.
O homem bom e a autopiedade
Um filme como esse, de 34 anos atrás, já incorporava diversos elementos discursivos do feminismo atual. Um elemento fundamental, porém, que se perde nos dias atuais, é a polarização entre os dois maridos. Duas ideias transmitidas pelo filme desapareceram na era das redes sociais: uma, a de que os homens não são todos iguais nem em virtudes, nem em defeitos e deformidades de caráter; duas, a de que nem sempre o problema da mulher está no fator externo, embora assim o identitarismo faça crer, em função de seus interesses de mercado. Ruth e Evelyn também se polarizam, porque a ela é negada a vida, enquanto suas atitudes demonstram virtudes, e a Evelyn a mesma é ofertada abundantemente, embora ela própria se afunde numa falta de autoestima regada a autopiedade. Esta última que, atualmente, é força motriz das correntes hegemônicas do feminismo e de quaisquer minorias organizadas dentro do arcabouço identitário.
A conceituação do fator identitário requer mais do que apontar a autopiedade, passando essencialmente por financiamentos internacionais, de fundos transnacionais e ONGs, para fomentar polarização entre a população trabalhadora, retendo a homogeneidade para classe dominante e seus objetivos de especulação com o capital da terra e do trabalho. Nesse reduto, homens e mulheres acendem charutos e estouram champanhes sem se importar, de fato, com os temas discutidos pela escumalha na internet.
Evelyn, ao longo da história, deixa o acuamento e torna-se a “empod…”…não existia esse termo. Mas uma cena é chave para entender a questão: quando é zoada e humilhada por mulheres mais jovens num estacionamento de um supermercado, ela pega o seu carro e, dando ré, destrói o carro das garotas. Elas se desesperam por ver o carro seriamente danificado e perguntam se ela enlouqueceu, ao passo que ela responde algo como: “vocês podem ser jovens e bonitas, mas eu que tenho seguro do carro”.
A protagonista entende, e usa perversamente como vingança, o elemento fundamental disso tudo: o que nos divide entre oprimidos e opressores é, muito mais que a identidade, a classe.