Soulfly, Archangel e o sincretismo semita

A saída de Max Cavalera do Sepultura ainda é tema de discussões acaloradas entre os fãs da banda e da carreira de seu primeiro vocalista. Entretanto, não é discutível que, enquanto Sepultura teve uma carreira acidentada, tendendo em sua sonoridade para um trash metal com elementos progressivos, além de temáticas literárias e mesmo intelectuais, como nas reproduções de “A divina comédia”, de Dante Alighieri, em “Dante XXI” (2006); e “A laranja mecânica”, de Anthony Burgess, em “A-Lex” (2009), Max Cavaleira seguiu o caminho místico que se apontava em “Roots” (1996) e construiu um trash metal místico com seu Soulfly em “Prophecy” (2004), “Dark Ages” (2005) e “Omen” (2010).

Em Archangel, Max explora esta temática em definitivo, e faz o retorno ao elemento cultural e religioso fundamental do país: o catolicismo sincrético, da religião colonizadora que incorpora elementos dos povos colonizados para facilitar sua assimilação, ao mesmo tempo que é refúgio para as religiões de matriz étnica minoritária para sobreviver. No caso do Brasil, ocorreu principalmente no sincretismo da Umbanda, associando Ogum a São Jorge, Iemanjá a Nossa Senhora e afins. No México, o mito da aparição de Guadalupe e a Festa dos Mortos incorpora à devoção mariana e ao Dia de Finados elementos místicos dos povos mexicas, dentro os quais estavam os astecas.

Iniciando o álbum com “We sold our souls to metal”, o disco usa do elemento associado à apostasia, de quem abandonou a religião para adorar aos deuses do metal. “Metal flows through my veins. I wanna rage I am insane” resume o sentido da música, que repete uma dezena de vezes o refrão sobre vender a alma. O elemento da revolta contra o sagrado fica evidente, e por isso conduz à faixa 2, “Archangel”, que tratará dos anjos caídos como figuras demoníacas.

A canção começa com uma dissonância que chama o mistério, com vozes que surgem ao fundo, depois uma oração em hebraico que a inscreve na temática religiosa semita, com aspectos cristãos, árabes e judeus.

War in heaven, angels fell

Lash out against the dragon’s spell

Rise above de abyss

Consecrate yeshua’s dream

Archangel, Archangel

Kindgom, power and glory

Malkuth geburah

Gedulah

Israfil (the burning one)

Azrael (the septuagint)

Archangel, Archangel

Kindom, power and glory

Malkuth Geburah

Gedulah

Percebe-se, portanto, elementos das três religões. Yeshua é o nome hebraico de Jesus Cristo, Malkuth e Geburah são elementos da cabala judaica, das sephiras da Árvore da Vida. Remete, também, a Israfil e Azrael, anjos do fim do mundo na cultura islâmica, e retorna ao arcanjo, figura eminentemente cristã: os anjos que protegem o mundo do mal. A síntese é de embate entre bem e mal nos três paradigmas religiosos de matriz ibraímica, dialogando com a pragmática e belicista “Territory”, do álbum do Sepultura “Chaos AD” (1993). Percebe-se o aprofundamento místico de Max Cavaleira em sua travessia como líder do Soulfly, que à altura daquele lançamento já tinha quase 20 anos.

Sem interrupção após “Archangel”, a narrativa segue para a faixa 3, “Sodomites”. Recuperando textos bíblicos sobre a adoração como traição a deus, o texto segue o tema anterior, trazendo à toma os caminhos obscuros da humanidade que se afasta do místico. “Wines of sodom, sin ov Gomorrah, dissolve by flame, in Leviathan’s den. Hail, Hosana, slaying the prophets, rape the covenant, none shall scape.”

Novamente sem interrupção, vamos para a faixa 4, Ishtar Rising, ou a ascensão da deusa egípcia da fertilidade. A deusa surge como autoridade máxima, rainho do inferno. “I the equinox, the ancient law, the dead will rise up, the dead will come, inhaling the incence of deity, woe to babylon, woe to thee”. Ou seja, a terra dos pecados está prestes a enfrentar a fúria de Ishtar, sempre esta terra sendo referenciada como a Babilônia, conforme a metáfora dos textos proféticos bíblicos, especialmente Isaías e Jeremias.

A faixa 5, “Live life hard!” é uma canção tradicional de heavy metal, falando sobre viver a vida intensamente, ao passo que a faixa 6 retorna aos temas hebraicos e mesopotâmicos, trazendo “Shamash”, o deus do sol e da justiça na Babilônia. Ele é retratado, como são as metáforas bíblicas com figuras babilônicas, como a ira de Deus, o que está marcadamente colocado em “In nomini domini, in nomini domini. Shamash, Ira Deorum, Shamash, Ira Deorum”. A associação é entre uma cosmologia judaico-cristã e entidades divinas do crescente fértil. “Root of David – erradicate – violate de Shabbath. Hammurabi code – eye for an eye. Stabbing the heavens – Mount sinai. Tribe of Judah – splendor of light – relatiate.” O argumento, portanto, refere-se à cultura judaica evocando a vingança semita contra os povos da mesopotâmia, que impuseram cativeiro aos judeus. Acima da sacralização do sábado, os povos ibraímicos devem reagir, devolvendo aos babilônicos o “olho por olho” do Código de Hammurabi.

Já na faixa 7, “Bethlehem blood”, o eu-lírico vai à condenação de cristo e do sangue derramado por seus próprios contemplados:

Chaldeans – the sacrosant

Like pagan giods burning incense

Betrayal in Gethsemane

Fallen Angels of perdition

Let it be written, let it be done…

And out the flash – unholy one

Yerushalaim Nehereset

Jerusalem is falling… falling

Let the streets flood

With Bethlehem’s blood

Let the streets flood

With Bethlehem’s blood

Toda a mística judaica, agora, volta-se para o cristianismo. O texto fala o tempo todo sobre vinganças de deus e das entidades da babilônia contra a Israel bíblica, e chega à condenação de cristo pela maioria dos judeus, povo ao qual Jesus pertencia e para quem viera, como elemento fundador da culpa na Era Cristã. O sangue deixa Belém e corre por suas ruas, permite que a narrativa faça a transição para a faixa 7, “Titans”, em que o ser humano está sob autoridade das divindades tartáricas dos Titãs, vilões aliados a Kronos, representações do mau na cultura grega. “War, war of the titans, titanomarchy. Kronos, Koios, Krios, Prometheus, Hyperion, Chaos, Tartarus, Zeus.”

Em “Deceiver”, faixa 9, o texto mais pobre do álbum fala sobre queda em corrupção, intolerância e desprezo para com os doentes, ainda consequência da condenação de Cristo. Já a faixa 10, “Mother of dragons”, que encerra o disco, inscreve o ser humano no paradigma medieval, chegando ao cristianismo.

Mater

Thunder and lightning

Halo of light

Mother of dragons

Draco – warrior

They call me – spitfire

A phoenix from the ash, this is my destiny

My reign is forever, no way you can kill me

A battle I will wage, the dawn of this new age

My time has arrived, now feel my rage

Black wings unfurl the life of my bones

Dying in smoke, I’m born in the coals

Scales hard as iron, you’ll never pierce my hull

Run you fucking cowards, pissing as you’re burned

Rise my dragons – rise above it all

Rise my dragons – rise till dawn

Rise my dragons – into the unknown

Rise my dragons – take your throne

Mater draco

Mater draco

Mater draco

(Mother of dragons)

Embora do dragão tenha surgido, no cristianismo primitivo, como elemento da maldade, no transcorrer da Idade Média ele se tornou um símbolo de poder em defesa do cristianismo. Em sincretismo com as culturas célticas, germânicas e eslavas, passou a ser representado na heráldica de vários reinos e, depois, países europeus. Até hoje, figura na bandeira do País de Gales e nos brasões da Islândia e das cidades de Londres e Varsóvia, dentre outros.

Quando o eu-lírico fala “Uma fênix das cinzas, é o meu destino. Meu reino é para sempre, não há como me matar”, está se falando no cruzado e no retorno a Jerusalém, como se percebe nas descrições de guerras e na metáfora da ascensão do dragão como figura de poder, que ergue-se ante um inimigo inominado. Se associado à Besta da Babilônia evocada em todas as canções anteriores, entende-se a mesma como o mau, o inimigo, a cruzada interior.

Archangel pode ser um álbum sobre as narrativas judaicas de luta pela terra do Levante, enriquecida com diversos mitos mesopotâmicos e referenciada pelo ideal cristão. Nesse sentido, o álbum falaria da trajetória de perda e retomada de Jerusalém, sob o auxílio do arcanjo. Pode ser, por outro lado, sobre a batalha contra o mal interior, sendo a Jerusalém uma metáfora mística sobre o messianismo e a salvação. Um marco, senão estético, narrativo da carreira de Soulfly. Seu álbum mais marcadamente cristão e que radicaliza a religiosidade já proposta em “Prophecy”.



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