Sobre a criação e descrição de personagens

A criação do texto narrativo num romance de fantasia depende intrinsecamente do texto descritivo. É impossível transportar o leitor para um cenário como Málkian se não houver o máximo da imersão de quem lê, e ela só pode ser obtida de duas maneiras: a primeira, permitindo que as pessoas sintam os ambientes do mundo de fantasia, saibam como eles são perceptíveis em imagem e som, principalmente, e em tato e olfato. Imagem e som estão à frente porque o principal canal midiático que temos hoje em dia, o audiovisual, trabalha com esses dois. Hoje, a literatura, principalmente no caso da produção de fantasia, trabalha incessantemente em interface com o cinema. A segunda é a descrição das personagens, e aí cabe ao escritor transmitir ao leitor os aspectos físicos e, sobretudo, o psicológico das mesmas, pois é ele que vai fazer a personagem ganhar a simpatia de quem lê.

Paisagens e ambientes

O segredo de descrever não está na simples junção de adjetivos mil a substantivos em série, como se o autor escrevesse: “minha cidade é assim, assim, assado… isso é vermelho, aquilo é verde, o som é assim e o cheiro é assim…”. Esse tipo de texto nós fazemos nas redações de colégio e podemos até obter uma boa nota com eles, mas é pouco eficaz para cativar um leitor, pelo simples motivo de ser pragmático demais, enfadonho. Quem lê quer uma essência, algo que sempre convide a pessoa a ler mais.

Por isso, o que o escritor deve buscar é exatamente essa “essência”. Deve se perguntar: “do que eu vou falar?”, “o que quero transmitir?”.

Quando descrevo Quélsian algo sobressai: o contraste social. Ele é o meu norte. A cidade onde está o rei Alzen é também a morada de todos os súditos explorados por sua ganância. Pronto. Temos uma “pedra fundamental”, e tudo que descrevermos vai ter dar norte à consumação desse aspecto de Quélsian, que me propus a mostrar. É como se o autor, ao falar sobre como é esse lugar, transmitisse um valor, uma opinião sobre aquele local e o que ele representa na narrativa.

Neste momento, entra em cena o vocabulário e seus muitos substantivos e adjetivos, que vão colorir o rabisco inicial dado pela essência encontrada. Se Quélsian é o local de contrastes, o que ele deve ter? A cidade deve alternar o luxo com a simplicidade, a sujeira com a limpeza, a riqueza com a pobreza, tudo que remeta àquela característica inicial. Isso pode ser permeado por várias referências, ao sabor do autor e ao alcance de seu arcabouço cultural.

Se temos uma referência local e temporal, isso ajuda. Quélsian é uma cidade espelhada nas muitas da Idade Moderna (séculos XVI, XVII, XVIII) europeia. Por isso, podemos pesquisar como era Paris, Londres ou Madrid nesse período, o que vai nos ajudar. Que essência elas tinham? Que adjetivos e substantivos podemos usar?

E… por onde devemos começar?

A noção de perspectiva é necessária ao início da descrição e às composições que vamos fazer para que o texto descritivo cative as pessoas e transporte-as para o local que estamos criando. É importante descrever em níveis, para que o leitor compreenda bem cada parte do ambiente ou paisagem. Se fizermos uma descrição panorâmica, poderemos começar pelo local que simboliza a cidade. Em Quélsian, por exemplo, pode ser o palácio do rei, embora não tenha sido a minha opção. Comecei pelo subúrbio, acompanhando o olhar da protagonista, Lorena, à medida que ela chegava numa carroça pela cidade, no livro I: A Lenda de Florine. A partir desse olhar, fui descrevendo a cidade e seus contrastes. Já quando contei ao leitor como é Mecena, a cidade das artes, optei pelo olhar panorâmico de uma personagem que estava no ponto mais alto da cidade. Isto está no livro III: A Cidade das Brumas.

O importante, porém, é trabalhar sempre com esses três pilares, os quais elenco nesta ordem: uma essência (a síntese do que quero transmitir sobre o lugar), vocabulário que mescle substantivos e adjetivos que representem os detalhes do local dentro da perspectiva dada pela essência, e uma ideia para a perspectiva em que vou apresentar o lugar (o que o leitor vai ver primeiro, e em que ordem apresentarei os outros detalhes). A essência pode ajudar a nortear a escolha da perspectiva. Se Quélsian é um lugar de contrastes, comecei pela parte pobre, mudando a cidade à medida que Lorena avançava com a carruagem. Se Mecena é a cidade das artes e de tudo que é belo, optei pelo panorama.

Personagens

Descrever personagens requer menos tempo e volume de texto, porém mais complexidade no que se refere às características psicológicas. Ao contrário do que muitos podem pensar, é ela que será a referência para a descrição da própria imagem da personagem, visto que ela é uma consequência de sua estrutura psicológica, na maior parte das vezes.

O caminho para encontrar as características fundamentais de uma personagem está no olhar para as pessoas. Quem é Hennet, por exemplo? Primeiro, definimos o garoto em gênero, idade, origem social, tudo de mais simples e pragmático. Ele é um menino, dezessete anos, pobre. Isso ajuda muito a definir que personalidade vai ter. Também levamos em consideração o papel social que ocupa: criado de Lorena. Tudo que criarmos a partir daí será um desdobramento, escolhido pelo autor, do fato de ele ser um menino de dezessete anos, pobre, criado da protagonista.

Pergunta: ele se revolta ou acata sua posição social? Aí entramos na esfera da personalidade…

Hennet é uma pessoa devotada a seus amigos, apesar de ser um servo. Isso decorre, é claro, do fato de ser bem tratado por seus soberanos, mas, ainda sim, descrevo a personagem atribuindo-lhe a escolha por ser leal a Lorena e sua família. A partir desta opção, são dados todos os demais traços de sua personalidade. Ele é corajoso em defesa dos amigos, mas é vaidoso quando se trata de sua capacidade de lutar, pois esse é o papel em que lhe é dado algum prestígio social (ele é treinado por Saylott, que foi general de Alzen). Ao mesmo tempo, tem medo de assumir posição quando nas discussões importantes do grupo de Lorena, pois pensa em si mesmo como um servo, ainda que a trajetória dos livros o coloque em posição muito superior àquela inicial.

E tendo esse aspecto de sua descrição bem lapidado (nunca estará completamente, cria-se enquanto escreve…), partimos à parte física, sempre buscando ater os traços da personagem ao que é dado por sua origem, idade, papel social, mas agora também norteado pela personalidade. Por isso, Hennet é loiro, porque sua origem étnica está nos povos de Bergrant, que são uma representação da europa germânica. E tem o corpo e o rosto tomado por cicatrizes, porque vive lutando. Também é forte, porque jovem, mas veste-se mal, porque é criado. Sua expressão transmite amizade, lealdade, mas algum ar de pedantismo quando se trata de sua capacidade de lutar e enfrentar desafios.

Estou dizendo de forma simples, visto que dou agora apenas os traços iniciais de seus aspectos físicos, mas a riqueza de vocabulário, assim como na descrição de paisagens e ambientes, vai ajudar a dizer de forma precisa e cativante como é seu corpo, sua expressão, sua roupa.

O importante, em suma, é também encontrar uma essência, que está na personalidade. Neste caso, porém, ela deve ser encontrada após o estabelecimento dos traços iniciais da personagem. Devo perguntar quem é aquele que procuro mostrar ao leitor em primeiro lugar. Em segundo, sua essência dada pela personalidade. Em terceiro, seus aspectos físicos, que devem ser coerentes aos dois primeiros.



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