Scorpions, Love at First Sting e os novos guetos do rock

O que é a cultura do rock’n’roll? Seguramente, ao defini-lo, muitos considerariam os elementos da guitarra e da distorção, às vezes junto a uma dose de rebeldia. Isso se bem que nem sempre, porque muito pouco havia de rebelde em Genesis ou Supertramp: virtuoses da música, é certo, mas burocráticos na forma de se apresentar ao público. Igualmente, Apocalyptica e Two Steps From Hell participam do gênero sem empregarem uma guitarra. Se tomarmos por elemento a erudição, presentes nesses últimos quatro nomes, Twisted Sister sai da conta.

A forma de conceituar o rock’n’roll é imprecisa, justamente porque cabem diferentes estilos em algo que atravessa um pouco desses elementos. Porém, fundamentalmente, o rock é pesado, é rebelde e é erudito. Reúne elementos politicamente de esquerda e de direita, visto que a rebeldia não se encaixa propriamente em espectros políticos práticos, e portanto Phil Anselmo (Pantera) é um negacionista de direita, ao passo que Fernanda Lira (Nervosa/Crypta) é uma feminista de esquerda. Congrega músicos pesados como Abbath (Immortal/Solo) e leves e alegres como Phill Collins (Genesis/Solo). Brutos como Max Cavalera (Sepultura/Soulfly/CavaleraConspiracy) e lúdicos como André Matos (Angra/Shaman/Solo).

O que os une, porém, é o gueto.

O gênero cujo aspecto principal é tido pela rebeldia, na verdade, é marcado sobretudo por uma estética e um comportamento marginais que o distanciam do centro da mídia e da aceitação social. O rock como “isso não é música”, como os garotos e garotas que as mães não quereriam como cônjuges de seus filhos. Esse é o que atravessa o erudito, o pesado e o rebelde e fazem com que as aparentemente comportadas e engraçadinhas japonesas LiSA e Babymetal sejam bandas de hard rock, a primera, e heavy metal, a segunda, ao passo que Bon Jovi se tornou uma banda pop, se sempre não o foi.

Pop, por sua vez, que é a simplificação comercial de qualquer gênero musical, o que inclui todo tipo de concessão estética e comportamental para aceitação pelo mercado.

Cintura dura do metal

Em 1984, a banda alemã Scorpions, então com Klaus Meine (vocal), Matthias Jabs (guitarra), Rudolf Schenker (guitarra), Francis Buchholz (baixo) e Herman Rarebell (bateria), lançou o álbum mais importante de sua história, “Love at first sting”, que redefiniu a banda. Com som mais regrado dentro do gênero hard rock, aproximavam-se do modelo norte-americano de Van Halen e Guns N’Roses, mantendo a diferença. “Rock you like a hurricane”, “Big city nights”, “Still loving you” e, a que mais interessa a este texto, “Bad boys running wild” marcaram a carreira da banda e a história do rock, tornando-se símbolo dos anos 1980.

Entretanto, naquele tempo, a Alemanha era um corpo estranho no gênero, o qual vinha tão somente, até o momento, com as cenas britânica e norte-americana. Para fins da grande indústria fonográfica, Scorpions abriu as portas para a cena alemã, que seria em dez anos a mais poderosa do rock europeu, com o enfraquecimento da cena britânica. Nos anos 90 e 2000, rock na Europa seria sinônimo de Alemanha, sendo até hoje o seu principal festival, equivalente à velha Woodstock dos anos 1960, realizado todos os anos na cidade alemã de Wacken. E, abrindo portas, revelou-se uma figura nova e inusitada no rock.

Rockeiros sem jogo de cintura: assim os músicos de Scorpions se apresentam em “Bad boys running wild”. Isso fica claro na contraposição entra a letra e o clip:

Out in the streets
The dogs are on the run
The cats are all in heat
Out in the streets
Snakes are all around you
Dirty rats are on their way
They control you and they'll make you pay

Out in the night
Glaring eyes in darkness
Tigers wanna fight
Out in the night
Spiders all around you
Spinning webs and make you pray
Tie you up and you can't get away

Bad boys running wild
If you don't play along with their games
Bad boys running wild
And you better get out of their way

Out in the streets
The dogs are on the run
The cats are all in heat
Out in the night
Spiders all around you
Spinning webs and make you pray
Tie you up and you can't get away

Bad boys running wild
If you don't play along with their games
Bad boys running wild
And you better get out of their way

Bad boys running wild
If you don't play along with their games
Bad boys running wild
And you better get out of their way

Way (way)
Way (way)
Way (way)

Get out of their way

Bad boys running wild
If you don't play along with their games
Bad boys running wild
And you better get out of their way

Bad boys running wild
If you don't play along with their games
Bad boys running wild
And you better get out of their way

Way (way)
Way (way)
Way (way)

Get out of their way

A aproximação entre os músicos da banda, ou a cena de que fazem parte, com animais que espreitam pela noite, dos quais se deve ter medo, é típica da rebeldia do rock. Poderia ser o demônio, ou fantasmas. Em “Bad boys running wild”, Scorpions escolhe animais diversos, sejam eles poderosos caçadores, como o tigre, inocentes cotidianos, como leão e gato, asquerosos e peçonhentos, como aranhas.

Porém, isso se contrapõe ao vídeo musical, em que os membros da banda, assim como algumas mulheres da cena, são apresentados como figuras fora de sintonia com o restante do rock, durões sem jogo de cintura, mas que, ao fim, argumentam “vocês podem ser mais legais, mas nós podemos acelerar uma BMW a duzentos por hora numa autobahn”.

As autobahns são estradas onde acelera-se ao máximo porque é permitido, não porque seja transgressão. Ou seja: "para sermos fora das regras, temos que criar uma regra que permita ser fora das regras." Nada mais alemão. A forma alemã de rebeldia, peso e erudição estava fundada ali, para depois render joias do heavy metal como Blind Guardian, Running Wild, Edguy, Avantasia, e servir a composições imersas nas raízes da música europeia.

E hoje? O que seria o novo?

Vale um artigo próprio, mas o hoje o rock vive um impasse criativo, sobrevivendo de bandas antigas fazendo relançamentos e retornos midiáticos, mas artisticamente carentes. Do mesmo jeito, bandas tributo a Led Zeppelin (Greta Van Fleet, Rival Sons) ou a Slipknot (Bring Me The Horizon, Parkway Drive) são lançadas pela indústria fonográfica para preencher o vazio deixado pela decadência criativa da velha guarda. Um dos últimos exemplos de álbum musicalmente relevante de uma banda antiga talvez tenha sido “Clockwork angels”, em 2012 pelo Rush, do qual já falamos nesta página.

No Japão, porém, nos últimos quinze anos floresceu a geração mais rica do rock na atualidade. Partiu, estimativamente, da banda e cantora LiSA em “Letters to you”, de 2010, embora sempre se possa pescar um predecessor aqui ou ali. Ela estourou na cena japonesa em 2013, com “Landscape” e os sucessos “Crossing fields”, “Hitoriwaratte”, “Träumerei” e “DOCTOR” (esta última, cumprindo um clichê de uma boa banda de rock’n’roll: uma música com o nome “doctor”). Depois, evoluiria para “Gurenge”, até hoje a sua música digna da alcunha de clássico, lançada em 2020. De lá pra cá, “Akeboshi” e “Isseino Kassai” aproximaram-se bastante, uma flertando com o heavy metal e o progressivo, a outra num rock’n’roll misturado a palmas e elementos dançantes, na esteira de Queen.

Se LiSA ainda tem uma carreira com presença no ocidente através dos animes, mas muito centrada musicalmente no Japão e vizinhos asiáticos, Babymetal já se internacionalizou, com clássicos que remontam ao início dos anos 2010, como “Gimme chocolate”, "Headbangerrr”, “Da da dance”, "PA PA YA!" e “Shanti shanti shanti”. Atualmente, lota festivais em todos os países e atrai membros de outras bandas para fotos em mídias sociais e parcerias musicais. Como espinha dorsal, o rock japonês, também chamado J-Rock, é um encontro entre elementos de hard rock, punk rock e, por vezes, power metal, mas destaca-se por suas cores e carinhas felizes e fofinhas, predominantemente com garotas no vocal.

Delas, vem um interessante paralelo com o clipe de “Bad boys running wild”, do Scorpions, visto anteriormente. Num vídeo de propaganda, Suzuka Nakamoto, Momoko Okazaki e Moa Kikuchi, de Babyetal, debocham da mesma diferença cultural em relação às cenas já estabelecidas, desta vez brincando com o black metal norueguês. O satânico Xytrax, vocalista da fictícia banda Impaled Rektum, tem perconceito contras as japinhas do metal e, ao mesmo tempo, vergonha de admitir que gosta delas. Eles se encontram no backstage de um festival no qual Xyrax foi expulso de sua banda, e é acolhido pelas garotas, que se dizem fãs dele.

Ambos os exemplos demonstram, este último mais didaticamente, o quanto o conceito do rock, um encontro entre erudição, peso e rebeldia, não passa por receitas estáticas, recebendo muito do contexto cultural em que foram formadas as bandas e compostas as músicas. A diferença é o marco fundamental: o gueto, como inicialmente dito. A não aceitação da dureza de um alemão, ou do fofinho das meninas japonesas.

Consiste em artistas e fãs resistentes culturalmente contra as imposições, mesmo dentro do rock. Seja contra a figura do "homem descolado que pega todas porque é macho alfa e malha na academia e briga nos bares" (Motley Crue, Guns N'Roses) ou o estereótipo da "mulher com iniciativa, que chuta a porta e faz cara de mau mesmo, porque o lugar da mulher é onde ela quiser" (Crypta, Doro, Alicia White-Gluz). Ambos que, num determinado tempo e outro contexto, entenderam-se como contestadores, mas se tornaram impositivos. Ou um "nerd" que só estuda e fica em casa não é olhado atravessado como antissocial, e uma "tradwife" que simplesente quer casar e cuidar da casa, ignorante e prejudcial às outras mulheres? Atualmente, em parte, a rebeldia do rock é conservadora, porque o poder para legitimar padrões de comportamento é progressista.

Aí reside a complexidade da quebra de paradigma, que colocou os alemães e coloca os japoneses, sobretudo as japonesas, na vanguarda do rock nas últimas quatro décadas, alcançando reconhecimento internacional nesta em que vivemos. 



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