
Sakura Yamauchi e o otimismo na finitude
Os limites da vida nos dizem sobre a morte, sempre, algo não planejado. Não importa o quanto estejamos doentes, ou o quanto tenhamos maus hábitos, ou ainda o quanto nos arrisquemos em atitudes perigosas, ainda assim sempre imaginamos que a nossa vez não será como a dos outros. O otimismo diante da morte é uma necessidade de sobrevivência, o que nos move a continuar vivendo mesmo sabendo que se vai morrer. E, em sendo assim, não raro a morte chega desavisadamente.
Esse é o tema de “Kimi no suizou wo tabetai”, traduzido literalmente em português para “Eu quero comer seu pâncreas”, mangá de Yoru Sumino e anime em longa-metragem de Shinichiro Ushijima, ambos que contam a história de Sakura Yamauchi, uma estudante de 16 anos que tem câncer no pâncreas. Ela, tudo indica, vai morrer dentro de poucos meses. Um garoto inominado que narra a história em primeira pessoa, e não tem interesse pelos outros, trabalha na biblioteca da escola e se encontra com uma garota alegre, que faz uma estranha piada sobre uma outra garota que, para ficar melhor de saúde, imaginava-se comendo a parte doente do corpo. Algo incompreensível, mas que chama a atenção do apático protagonista.
Ela vai morrer
Ele é movido a conversar com ela, deixando a inércia em que vivia, de uma pessoa que não se importava, de verdade, em manter relações interpessoais. Pode parecer estranho na cultura do ocidente, mas, no Japão, o arquétipo é comum entre personagens de animes, visto que a introspecção é parte da cultura japonesa. Sakura rompe com isso e, muito resumidamente, introduz o garoto em sua primeira amizade e, com o transcorrer da narrativa, o leitor do mangá ou expectador do filme tende a compreender que a relação pode se desenvolver para algo mais. Porém, sempre paira a verdade revelada no primeiro diálogo: ela vai morrer.
Sakura conta ao protagonista que morrerá em breve, vítima de uma doença no pâncreas – supostamente, câncer – sempre com um sorriso no rosto. Apenas diz que quer viver o máximo que pode, o que assusta e sensibiliza o garoto. E, assim, a amizade se desenvolve e eles viajam juntos, hospedam-se no mesmo quarto por acidente e ficam jogando cartas. Sim, jogando cartas. É um tema recorrente em animes, também: um casal que dorme junto, sem fazer nada, um morrendo de vergonha do outro. Um recurso narrativo romântico que, possivelmente, foi usado pela última vez quando o Dadá Maravilha ainda jogava pelo Clube Atlético Mineiro.
São momentos intensos de alegria e descoberta para o jovem, mas ela sempre reitera, sorrindo e esfuziante: ela vai morrer!
De onde vem a alegria?
Chega a ser inverossímil a forma como ela garante que vai morrer e, apesar disso, está sempre transparecendo felicidade de forma incomparável a qualquer pessoa. Só durante o segundo volume do mangá, que corresponde à segunda metade do filme, nós descobrimos que ela têm muito medo de morrer, que se sente angustiada todos os dias, que chora muito. E que não o faz na frente dos outros porque quer viver um amor antes de morrer, escolhendo o garoto que não tem amigos para que, mesmo não vivendo para estar com ele, faça a diferença em sua vida.
Quando isso começa a ser revelado, Sakura está internada após uma recaída da doença. As conversas no hospital começam a indicar seu real sentimento, para com ele e a doença, embora não fique claro. Ainda assim, sua força de viver a faz deixar o hospital. Ela volta a se encontrar com o protagonista, mas agora ele é excessivamente cuidadoso com ela, não querendo que ela saia de casa, porque sua saúde pode piorar e ela não ter atendimento. De qualquer forma, ela se mantém em atividade, e eles passam a se corresponder por mensagem. Por fim, um dia ele envia para ela a mensagem com que a conversa começou “Quero comer o seu pâncreas”, e a resposta não vem.
A morte de Sakura Yamauchi vem de forma imprevisível, mesmo ela sendo esperada. E de maneira que ninguém poderia cogitar: enquanto caminhava para casa, um assassino a esfaqueou e ela morreu a caminho do hospital. A finitude de Sakura se revelou, enfim, independente do câncer de pâncreas. Convivendo de forma otimista com ele, ela morreu assassinada, devastando o protagonista e sua família, porque todos esperavam que ela vivesse para lutar até o fim contra sua doença, e não morrer pelas mãos de um criminoso.
O amor como sacrifício
O fim do mangá/filme fala do encontro do garoto com a mãe de Sakura, em que ele descobre o diário da menina, revelando que o amava e não revelava seu sofrimento para que pudesse transmitir o seu amor, sem que parecesse necessidade de consolação. A necessidade real é de não se abater para melhor servir ao outro. A realidade da morte sempre mais próxima, que pode vir não só da finitude esperada, mas também da tragédia natural ou da guerra, são, no universo de mangás e animes, o reflexo do que os japoneses sofreram historicamente e os moldou como povo.
O sacrifício e supressão do sofrimento, também tema recorrente entre os japoneses, são a expressão de um povo que sofre periodicamente com catástrofes naturais e foi assolado por um Império e uma hierarquia militar-social autoritários, que causaram uma guerra sangrenta no século XX, terminando por fazer seu povo ser igualmente vítima dela, com os bombardeios americanos – diferentemente dos alemães e italianos, o povo japonês já nascia subordinado ao Império, portanto não participou de sua ascensão ao poder, nem foi cúmplice de seus crimes.
Assim, só recentemente esta nação pôde amortizar os efeitos de tufões, tsunamis e terremotos com uso de tecnologia, e também transformar-se numa nação estável e, em linhas gerais, pacifista. Antes, sobreviviam por conta da disciplina e das redes de solidariedade, que terminaram por caracterizar este isolado e introspectivo povo do oriente como, assim eu o chamo, o povo da “bela tristeza”. Isto é, a tristeza que significa algo para além da angústia. A melancolia e introspecção que significam reservar o melhor de si para o amor ao próximo.