
Rush, Clockwork Angels e a recompensa pela ignorância
É raríssimo que bandas componham alguns clássicos nos seus últimos anos de carreira. Geralmente, os artistas já deixaram seu auge criativo por diversos fatores: cansaço, rupturas na banda que desalinharam os melhores compositores, falta de inovação porque a exaustiva rotina de lançamentos, merchandising e shows não permite o intercâmbio estético para desenvolvimento de novas ideias. De todos esses efeitos, alguns atingiram a banda Rush, de Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart ao longo de suas mais de quatro décadas de atividade, desde o lançamento do álbum título, em 1974, até o último disco, Clockwork Angels, em 2012.
Depois de passar pela fase hard rock, entre Rush (1974) e Fly by Night (1975), a banda desenvolveu suas características progressivas em Carees of Steel (1975), 2112 (1976) e atingiu seu auge como banda de rock progressivo em A Farewell to the Kings, em 1977. Ainda neste subgênero, a banda passa por Hemispheres (1978), Permanente Waves (1980) e Moving Pictures (1981), quando sai do progressivo puro e dialoga com o pop oitentista e seus abusivos sintetizadores. Embora não seja o ponto alto da banda num sentido própriamente musical, que mais marcadamente define seus estilos em Rush e Fly by Night, a fase hard rock, e em 2112 e A Farewell to the Kings, o período progressivo, quando conversa com o pop a banda chega ao seu principal sucesso midiático: em Moving Pictures, vem a clássica canção Tom Sawyer.
O auge foi seguido por altos e baixos em álbuns de estúdio, apesar de muito sucesso em agendas de concertos, o que corrobora uma das razões apontadas pela crise criativa das principais bandas: a rotina comercial prejudica o aspecto criativo. De Moving Pictures em diante, Rush se tornou um sucesso em shows, dando voltas e voltas ao mundo nos anos 1980, 1990 e 2000, incluindo aí a gravação de Rush in Rio (2003), álbum ao vivo gravado no Maracanã. Porém, no final dos anos 2000 a banda se retirou para a gravação de um novo álbum, que deixaria ao mundo do rock uma joia da composição igualável por poucas no gênero progressivo.
Clockwork Angels é uma história original inspirada em diversos autores de fantasia, steampunk e ficção científica, como o próprio Anthony Burgess, de Laranja Mecânica, do qual empresta parte do nome, já que em inglês Laranja Mecânica é Clockwork Orange. Além desse, autores como George Orwell, H. G. Wells e Jules Verne foram referenciados, no álbum que conta a história de Owen Hardy, um garoto que quer deixar de viver no provinciano vilarejo de Barrel Arbor, para viver aventuras idealistas sobre liberdade e descobertas.
Apesar de aconselhado pelos guardiões da vila, os "Anjos Mecânicos", que dão título ao álbum e à sua melhor faixa, número 3, o garoto insiste em seu desejo de deixar a vila, mas é alertado pelos anjos sobre "O Anarquista", faixa 4, que fez o mesmo percurso e foi recompensado com algo que não deveria, tornando-se um ser carregado do sentimento de vingança. Tal sentimento se confirma quando, na faixa 5, "Carnies", o Anarquista surge e explode uma bomba que causa caos ao vilarejo, e termina por plantar o detonador nas mãos de Owen, que é incriminado pelo ataque.
As informações surgem desconectadamente, um pouco vagas, como é comum aos álbuns conceituais de rock progressivo e heavy metal, visto a necessária completude entre história e música para a compreensão do sentido completo da obra. Não fica claro o que são os Anjos Mecânicos, tampouco quem é o Anarquista, restando tão somente o nome de Owen, seu idealismo vagamente conceituado e versado nas canções, que discutem a liberdade e o conselho por ponderação dado pelos protetores da vila.
High above the city square
Globes of light float in mid-air
Higher still, against the night
Clockwork angels bathed in light
You promise every treasure, to the foolish and the wise
Goddesses of mystery, spirits in disguise
Every pleasure, we bow and close our eyes
Clockwork angels, promise every prize
Clockwork angels, spread their arms and sing
Synchronized and graceful, they move like living things
Goddesses of Light, of Sea and Sky and Land
Clockwork angels, the people raise their hands
As if to fly
As if to fly
All around the city square
Power shimmers in the air
People gazing up with love
To those angels high above
Celestial machinery - move through your commands
Goddesses of mystery, so delicate and so grand
Moved to worship, we bow and close our eyes
Clockwork angels, promise every prize
Clockwork angels, spread their arms and sing
Synchronized and graceful, they move like living things
Goddesses of Light, of Sea and Sky and Land
Clockwork angels, the people raise their hands
As if to fly
As if to fly
"Lean not upon your own understanding
Ignorance is well and truly blessed
Trust in perfect love, and perfect planning
Everything will turn out for the best"
Stars aglow like scattered sparks
Span the sky in clockwork arcs
Hint at more than we can see
Spiritual machinery
Clockwork angels, spread their arms and sing
Synchronized and graceful, they move like living things
Goddesses of Light, of Sea and Sky and Land
Clockwork angels, the people raise their hands
Clockwork angels, spread their arms and sing
Synchronized and graceful, they move like living things
Goddesses of Light, of Sea and Sky and Land
Clockwork angels, the people raise their hands
As if to fly
"What do you lack?"
Apontados como um misto de divindade e monumento no alto da cidade, os Anjos Mecânicos são adorados pelo povo de Barrel Arbor, e escolhem Owen para aconselhá-lo a aceitar os benefícios da ignorância, de que a realidade deve ser negada, mas assim ofertada uma vida em paz. Os anjos orientam o protagonista a buscar uma vida pacata, o que ele se recusa a fazer e parte de Barrel Arbor após ser acusado de plantar a bomba do Anarquista.
Na faixa sete, "Seven cities of gold", a personagem principal segue viagem para o leste, encontrando novas paisagens, frio, fenômenos sobrenaturais e todo tipo de problemas, até chegar a uma cidade portuária, onde encontra trabalho para viver. Por lá passa algum tempo até que se entedia, decide viajar como tripulante de um dos navios ancorados na cidade, e, na faixa 8, "The wreckers", uma armadilha pregada por piratas faz com que a embarcação afunde e Owen seja jogado numa ilha como náufrago.
Daí, as três faixas finais, "Headlong flight", "BU2B2", "Wish them well" e "The garden", são destinadas à reflexão do conforto perdido por Owen ao querer descobrir o mundo, deixando a vila protegida pelos Anjos Mecânicos. Falam sobre como ele não se arrepende de tê-la deixado, tal como o tinha feito o Anarquista, do qual não soube mais o paradeiro. Não sabia mais se ele não era criação da própria vila, buscando evitar que as pessoas a deixassem, e o atentado, portanto, resultado de uma acusação feita pelos conterrâneos, dada sua determinação em deixar o lugar. O protagonista busca evitar sentimentos de vingança, e pensa apenas no jardim de experiências e sentimentos vividos por ele em sua jornada, até terminar isolado numa ilha.
Clockwork Angels é o disco mais pesado do Rush desde sua saída do subgênero hard rock para o progressivo, embora retenha todas as características desse último. Com o uso de efeitos ecoantes sobre teclados e sinterizadores, além dos solos complexos e das longas notas executadas por Geddy Lee, consegue manter o ouvinte numa atmosfera de fantasia e mistério que, ainda que o roteiro não seja brilhante como em Avantasia The Metal Opera (Avantasia, 2001) e Temple of Shadows (Angra, 2004), entrega ao ouvinte uma boa história.
Entretanto, sonoridade a conceito, além de uma bem trabalhada arte de capa e encarte, a atmosfera de um épico de jornada, com cenário stempunk e conceitos filosóficos interessantes sobre a proteção da ignorância e a insegurança da busca por saber, inscrevem o disco entre os clássicos da banda e, seguramente, o principal da banda após Moving Pictures, quando se encerrou a fase clássica. Como fator negativo, fica a seletividade do público a que se destina, dadas a composição e as letras, além da linha narrativa, complexas para o público médio.
Em Clockwork Angels, Rush se assume cult, tal qual o livro de Anthony Burgess e o filme de Stanley Kubrick, de quem o álbum herda parte do nome, Clockwork Orange.