
Robô Selvagem e o lugar-comum da animação americana
Inteligência artificial, família não convencional, libertação do jovem da família, natureza idealizada e civilização predatória. A animação “O robô selvagem”, favorito ao Oscar de Animação em 2025 até o surgimento do fenômeno “Flow”, que levou a estatueta, é um retrato de como o homem contemporâneo se vê em suas relações pessoais e com o mundo que o cerca. Em que pese o clichê dos elementos, é interessante a comparação com a animação japonesa, cujos longas, um tanto quanto atemporais, são marcados pela reverência ao sagrado, o culto ao aperfeiçoamento humano e o retorno do herói à autoridade familiar.
Nos dois últimos anos, o Oscar ficou fora dos Estados Unidos, o que jamais ocorrera ao país que inventou esta forma de fazer cinema. E, em ambos os casos, embora os votantes do principal prêmio do cinema sejam os mesmos de dez, vinte anos atrás, exceto pela internacionalização do juri nos últimos anos, o fator público têm sido fundamental para certo redirecionamento da excelência em produzir animação. Tanto os desenhos japoneses vêm superando em popularidade as tradicionais produções de Disney, Nickelodeon, Looney Tunes e da extinta Hannah Barbera, quanto fenômenos de popularidade vêm se deslocando para centros alternativos, como leste europeu e Coreia do Sul. Os desenhos de super-heróis, inclusive, já foram substituídos por live-actions já dentro do mercado americano ao longo das três últimas décadas, com os sucessos de “X-Men” e “Homem Aranha” na virada dos anos 1990 para 2000. Os mangás já são, há alguns anos, mais vendidos que os gibis nos Estados Unidos.
Tomando “Flow” como um caso à parte, que merece aqui sua própria resenha, se comparados “Robô selvagem”, derrotado em 2025, e “O menino e a garça”, vitorioso em 2024, têm-se pistas sobre a decadência da animação americana e a consolidação dos animes. Estes que, na última década, vêm sendo tratados não somente como enlatados baratos de programas matinais infantis, os quais nem existem mais, mas como produções de qualidade cinematográfica. O marco inicial pode ser considerado o reconhecimento de “A viagem de Chihiro”, vencedor do prêmio em 2003 contra “Monstros S.A.”, da Disney/Pixar.
Robô Selvagem conta a história de um robô que, devido a algum acidente na hora do transporte da fábrica para a cidade, cai numa floresta, mas não quebra. Levantando-se num local imprevisto, passa a se orientar por sua inteligência artificial, que é capaz de decifrar toda a complexidade da vida selvagem, embora a programação não permita que os animais identifiquem o robô como um ser amigável. Têm-se aí uma sequência de vinte minutos angustiantes, em que o protagonista perambula pela floresta, sem ser aceito por nenhum dos animais, buscando ler seus padrões de comportamento, conhecer seus códigos de comunicação, interpretar toda a realidade da vida selvagem, sem sucesso interacional.
Isso muda quando ele encontra um ovo de ganso sem a mãe correspondente. Ele é predado por uma raposa, da qual o robô inicialmente o protege, até que a própria raposa desiste e resolve interagir com a máquina. É o primeiro animal, de fato, com que o protagonista interage, salvo um ou outro bicho que reage com medo, ou que demonstra aceitação da morte etc. Num momento curioso, a maquina está entre oito gambás, uma mãe e sete filhotes, e a mãe diz “eu tenho sete filhos”. Quando um grita após escutar o som de um rugido, ela corrige-se, resignada e friamente: “agora seis”. A crueza da morte em vida selvagem é várias vezes lembrada em Robô Selvagem, e isso será importante à frente na análise.
Voltando à raposa, que antes queria comer o ovo, ela começa a explicar ao robô como o ovo funciona, de modo a ficar amiga do robô e, depois que ele descobre que pode chocar o ovo num compartimento dentro de si, os dois veem nascer um filhote de ganso. Logo os dois tentam ensinar o filhote a falar e andar e se comportar como ganso, o que o robô sabe como fazer, graças à sua inteligência artificial. Com um pouco de evolução e cenas fofinhas na criação do ganso, um dia os três dormem numa caverna. O filhote chama o robô de mamãe (a bem da verdade, ele tem voz feminina, embora seu nome seja um código e ele não tenha gênero), e dorme junto ao pescoço do que supõe ser sua mãe, enquanto a máquina desliga para recarregar e a raposa se aninha, também, junto a ela.
O fator humano e a quebra da harmonia
É o fim do primeiro segmento do longa-metragem. A cena inaugura o conceito de família dentro de sua fantasia. Reproduz, de certa forma, o paradigma de Timão e Pumba, em que espécies diferentes criam um terceiro animal, muito embora agora haja o elemento “Aldous Huxley” do bebê criado pela máquina. Na ponte para o segundo momento da história, outro paradigma comum às animações americanas aparece: o filhote torna-se jovem e chega à autodescoberta e sua “necessária” separação do núcleo familiar, a fim de transcendê-la numa causa maior e mais nobre que a dos pais. O ganso descobre que não pertence à família chefiada por um robô sem gênero com voz feminina e auxiliado por uma raposa macho, e que na verdade ele deveria estar com outros gansos (que surpreendente, não?). Quando os encontra, quer descobrir a liberdade de ser ganso e voar pelo mundo nos processos migratórios de sua espécie, e (aqui condensando a história), parte da companhia do robô, tornando-se um membro de seu bando. Não é mais o filho da máquina, mas da natureza. Começa o segundo segmento.
Nele, surge o humano. Num voo que passa numa cidade, os gansos são confundidos com pragas e atacados pelos humanos, num erro causado pelo jovem neófito, que vê robôs como sua mãe e quer conhecê-los, sem saber que estes são programados para identificar ataques de animais a uma plantação. Concomitantemente, a fábrica do Robô Selvagem já o descobriu, graças a um sinal que ele emite e conseguem captar, e envia um robô mais avançado, numa nave, para buscá-lo. Embora ele não queira deixar a floresta, o robô comandado pelos humanos o sequestra, e aos animais cabe resgatar a máquina amiga de toda à floresta, que àquela altura já uniu todos os animais que, supostamente, deveriam estar comendo uns aos outros. O filme, antes um retrato da vida selvagem nua e crua, agora não explica bem como os bichos vivem amistosamente, após o messianismo do robô. Por último chega o bando dos gansos, migrando de volta, em tempo de o ex-filhote atacar a nave com a ajuda de seus novos amigos, e resgatar a mãe, transcendendo-a como o jovem que agora conhece a cidade, ao contrário dela.
Esta suspensão da descrença é sempre um dilema em filmes sobre animais cujo núcleo narrativo é muito amplo e diverso, como Rei Leão e Madagascar. Se, neste último, pode-se dizer que eram animais de cativeiro, tolhidos em seus instintos, o mesmo não serve para o primeiro, nem para este do qual falamos. Robô Selvagem, no primeiro segmento, faz questão de polarizar o instinto selvagem com a racionalidade humana, aplicada à máquina, o que produz suas melhores cenas nos primeiros e angustiantes vinte minutos. Entretanto, quando cai na narrativa clichê dos longas infantis americanos, falha ao retratar uma amizade entre animais que se unem para se protegerem do frio, ajudam a criar o ganso e, agora, estarão unidos para resgatar o robô, esquecendo-se de que são presas e predadores uns dos outros.
Os humanos, insensíveis, surgem apenas através das máquinas que põem para atacar os gansos e sequestrar o robô. E os bichos, esses sim plenos de virtude e companheirismo, resgatam a mãe adotiva do ganso e retornam à floresta. O robô, por fim, negligencia os esforços dos pobres bichos e diz que deve aceitar sua programação inicial, de servir aos humanos como máquina de inteligência artificial para fins agrícolas, e abandona a floresta. É retratado, ao fim, como uma máquina que auxilia no cultivo de algum produto numa estufa, tomando notações para uma coordenadora humana. Enquanto isso, os animais estão juntos numa caverna da floresta, desde um urso até um ratinho, reunidos para ouvir histórias do heroísmo do robô e o dia messiânico de seu retorno, contadas pela raposa. Não se sabe, exatamente, comendo o quê, já que no início são retratados de forma crua e realista, caindo depois na idealização.
O que se vê é uma salada mista de lugares-comuns de animações Disney/Pixar e Dreamworks, que ocupam as histórias de animação americanas desde os anos 2000, e cujo marco é Shrek: a animação que rebaixa a reflexão moral de todas as anteriores, assim como retira o lirismo do desenho propriamente dito e passa à narrativa movida a alívio cômico e ao hiper-realismo da computação gráfica. Em que pese ser uma animação com cenas muito bonitas, além de uma reflexão potencialmente interessante entre a racionalidade sem alma da inteligência artificial e o caos transcendente da vida selvagem, não explora essa dicotomia para, no lugar, versar sobre a família não convencional, a vilania da civilização, o dado idílico da floresta, a descoberta do jovem que parte para ser melhor que aqueles que o criaram.
Caminho distinto define o Studio Ghibli
Resumidamente, para discuti-lo melhor noutra oportunidade, “O menino e a garça” é realizado pelos consagrados Studio Ghibli como produtor e Hayao Miyazaki como diretor, parceria de sucesso lá atrás em "A viagem de Chihiro", e apresenta-se como uma história sobre o oposto: um garoto chamado Mahito perde os pais na Segunda Guerra Mundial e vai a uma fazenda para ser criado pelos tios, onde há um moinho mágico que o chama em sua mente porque, lá, existem seres sobrenaturais que conhecem o paradeiro de sua mãe. A jornada do garoto, que começa a seguir uma criatura com forma de garça, é pelo retorno ao núcleo familiar, ainda que sabidamente perdido. Ele é humano, os pais são humanos, os tios, igualmente.
A magia na animação do Studio Ghibli é uma metáfora do percurso e da descoberta, e não um fator substitutivo da realidade, que idealiza valores superiores aos nossos como civilização. Em sua jornada pelo mundo fantástico escondido no moinho de vento, Mahito encontrará criaturas com diversos aspectos sobre si mesmo. Num momento encontra a mãe, e o dado da humanização em prioridade contra a idealização, além da reverência à figura tradicional da maternidade, conduzirá a narrativa a um desfecho emocionante e surpreendente.
A animação japonesa mantêm os aspectos clássicos que consagraram a americana, incorporando a ela as características ancestrais da sociedade oriental e o contínuo taoismo, confucionismo, xintoísmo e zen-budismo, o que equivaleria a continuarmos greco-romanos, platônicos, escolásticos, kantianos e, portanto, cristãos em nossas produções. Os desenhos do Studio Ghibli, tomados como exemplo, repetem temas e percursos de natureza filosófica fundamentada no místico-religioso, sem que pareçam todos o mesmo. A natureza é retratada como extensão do humano e determinada pelo âmbito espiritual, e não vítima de ambos. O eterno é marcado pelo retorno à família, a transformação a partir da perda, o lugar recôndito da descoberta da magia como o sagrado de nós mesmos. A jornada de Chihiro pela libertação dos pais transformados em porcos é, agora, a busca de Mahito pela mãe guardada pelo moinho.
A animação americana, por outro lado, repete receitas técnicas de sucesso (nesse caso, ressalve-se, Robô Selvagem inova bastante num longa muito bonito) e zonas de conforto nos roteiros, tendo visto esvaecer seu encanto e levantando bilheteria, atualmente, praticamente com a reserva de mercado conquistada por Disney e Dreamworks nas salas de cinema e streamers do ocidente. As grandes empresas beneficiam-se de um gênero caro para ser produzido fora dos Estados Unidos e Japão, e este último tem distribuição restrita devido à maior complexidade das histórias, barreira do idioma e dificuldades para estúdios de dublagem.
Algo que pode estar mudando, como sinaliza a produção vitoriosa de “Flow”.