
Jennings, Marco Polo e a Idade Média longe do ideal
A idealização da Idade Média, que foi discutida aqui em texto sobre “As crônicas de Artur”, de Bernard Cornwell, não se resume à adaptação de personagens semi-históricas de seus anos fundacionais, mas também diz respeito aos fartamente documentados heróis que viveram o auge do período. As histórias que nos chegam sobre Joana d’Arc, sobre os cruzados, Rei Ricardo “Coração de Leão”, São Tomás de Aquino, seguramente nos chegam idealizadas, já desde as crônicas e documentos redigidos naquela época.
O desafio, portanto, de dar ares historiográficos para as façanhas do mercador veneziano Marco Polo (1254-1324), responsável pela abertura de diversas rotas comerciais e de contatos diplomáticos entre os reinos do ocidente e os Impérios chinês e mongol, deveria ser assumido por algum escritor do ocidente ou do oriente, já que esta personagem tem os pés nos dois hemisférios e feitos relevantes para europeus e asiáticos.
O escritor norte-americano Gary Jennings (1928-1999), autor do importante romance Asteca (1980), em 1984 tomou a frente de uma reconstituição historiográfica e contemporânea do clássico “Il Milione” (século XIV), conhecido no Brasil como “As viagens de Marco Polo”. São diários escritos pelo próprio mercador em sua trajetória como viajante ao oriente. “O viajante” é o nome da obra, que abrange desde a infância de Marco Polo até sua velhice, percorrendo algo em torno de 60 anos em quase mil páginas e diagramação em letras miúdas.
Miséria e hipocrisia na Veneza medieval
A história começa em Veneza, narrando as peripécias do mercador quando criança. Evidentemente, grande parte dos aspectos ficcionais da narrativa, já que o autor não tem domínio dos detalhes da vida de Marco Polo, são fantasiados para agradar ao público contemporâneo. As lacunas deixadas por um “Il Milione” quase protocolar, devido à falta de instrumentos para narrativas detalhadas numa Idade Média em que livros eram escritos a pena e tinta, e páginas e encadernações eram um tesouro até para este que foi um dos homens mais ricos da época, são preenchidas com ação, romance e algumas exageradas passagens sexuais, que darão o detalhamento e a cadência do roteiro de Jennings.
Marco se envolve sexualmente pela primeira vez aos 12 anos, com uma menina de rua de Veneza, o que já rasga uma Idade Média sem ideais. A miséria da cidade mais charmosa da Itália, em pleno medievo, é contrastada com o luxo de sua elite, tomada pelo reacionarismo católico e pela hipocrisia de sua nobreza. Como o autor incorpora valores contemporâneos à história medieval, o juízo de valor sobre a Igreja Católica e a nobreza impõe a ambos a pecha de corruptos. Isso fica claro quando Marco Polo, já adolescente, envolve-se com uma mulher casada e muitos anos mais velha. Ele é obrigado a deixar uma Veneza tomada pela luxúria, mais incapaz de aceitar o adultério de uma mulher, o que resvala em seu amante.
O jovem sai com seu pai, Niccolò, e seu tio, Matteo, ambos comerciantes renomados. O que vem adiante é a joia deste livro: uma riquíssima descrição de vários pontos do oriente: Levante, Pérsia, Kitai – sul da China – e o Império Mongol são algumas das regiões retratadas na história. O detalhamento é vivo e chega a pérolas como a descrição de uma fábrica de tapeçarias persas, em que um sistema semi-industrial é utilizado usando insetos semelhantes a traças; ou o retrato da tortura chinesa, conhecida pelo termo, mas não exatamente em seu processo, que no livro é descrita como uma forma de tortura com cortes, a qual pode manter o torturado sentindo dores por anos sem perder a consciência ou morrer.
Em todos esses momentos há muitas cenas de sexo, às vezes recorrendo ao bizarro e indescritíveis neste site. Esse é o momento em que o livro peca, devido à sua apelatividade, que tira o leitor mais ávido por história da imersão proporcionada pelas cenas das cidades e suas culturas. O processo de pesquisa se perde em momentos narrativos que transcendem, inclusive, o politicamente correto. Chega ao limite do que se considera aceitável, tanto para o nariz torcido de senhoras da boa sociedade verde-amarela, quanto para o arrepio de feministas lilazes.
Para esta crítica, não fica condenação moral religiosa nem identitária, restando o demérito no aspecto narrativo. Porém, atualmente a história facilmente seria condenada pela forma como retrata a sexualidade com as mulheres, supostamente na crueza como era praticada na calada das alcovas do medievo. Levando em consideração a possibilidade de que as práticas tenham existido, já que a obra decorre de pesquisa científica, vale a curiosidade de eventuais leitores em se aventurar pelas experiências sexuais de Marco Polo, sobretudo sabendo que atualmente essas cenas flertam com o proibido.
Esplêndidas transições de cenário
O ponto alto são as vivências do narrador em meio a chineses e mongóis. O líder Kubilai Khan entra na história como uma reprodução do consagrado Genghis Khan, de quem era neto. O autor prefere recorrer ao arquétipo deixado pelo avô, mais interessante do ponto de vista narrativo, no que acerta e rende excelentes cenas de ação para o clímax da história. Por fim, ao retorno e repouso de Marco Polo em Veneza, é reservado o desfecho de suas sagas amorosas, num evento igualmente imoral, mas razoável perto de tantos outros.
Gary Jennings acerta e erra em diversos pontos de “O viajante”, ficando algumas casas atrás de um Bernard Cornwell que, anos mais tarde, seguiria o mesmo propósito em “As crônicas de Artur”. Enquanto o Artur de Corwnell vai no máximo da precisão historiográfica, ainda que sacrifique expectativas do leitor contemporâneo, o Marco Polo de Jennings espetaculariza a Idade Média real, devolvendo-a à idealização, que agora transita da harmonia, santidade e beleza da concepção cristã para o caos, a luxúria e a crueza de uma preconcepção pós-moderna.
Ainda assim, pode ser considerado como o romance que deu as melhores páginas à saga de Marco Polo, destacando-se o ponto alto de suas descrições e cenas de ação e a cadência das transições de ambientes narrativos, este último fundamental para um romance que se presta a narrar uma peregrinação de ao menos três décadas. Vale a leitura, embora sua comercialização, em tempos em que dificilmente uma Lilian Moritz Schwartz vá aceitá-lo no catálogo de sua Companhia das Letras, esteja restrita a sebos. Contudo, não cobram caro.