Dois Papas, a doutrina e as demandas sociais

O papa Francisco, ao longo de quase 12 anos de pontificado, tornou-se um dos patriarcas de mais popularidade na história do Vaticano, emparelhando com o lendário João Paulo II. Embora seu tempo no trono de São Pedro ainda seja metade do icônico papa do século XX, seus caminhos progressistas agradaram a boa parte da comunidade católica, encurralada pela pressão da esquerda identitária, pelas instituições ditas democráticas e por correntes heréticas do protestantismo neopentecostal. Por outro lado, angariou antipatia das várias vertentes neoconservadoras em ascensão nos últimos dez anos, cenário que João Paulo II não enfrentou.

Nesse meio tempo, entre os dois papas mais relevantes da contemporaneidade, houve a unanimidade Bento XVI. Unanimidade não porque fosse um homem capaz de arregimentar seu rebanho de forma coesa, e manter o sentimento de simpatia e respeito pelos que estavam fora. O papa que conduziu a Igreja Católica entre 2005 e 2013 foi considerado, à época, apagado em carisma, retrógrado em doutrina, insensível aos problemas sociais e negligente com problemas de corrupção e escândalos sexuais. Seu melhor momento, para muitos, teria sido a humildade de sua renúncia.

O filme “Dois papas” (2019), com Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, busca rever ideias preconcebidas tanto negativamente, contra Bento XVI, quando excessivamente idealistas, quanto a Francisco. Ao longo de 125 minutos dirigidos pelo brasileiro Fernando Meirelles, de Cidade de Deus (2002) e Jardineiro Fiel (2005), diálogos sobre fundamentos teológicos de uma Igreja em crise são intercalados por cenas cotidianas, por vezes capazes de render boas risadas, que humanizam a relação entre os cardeais Joseph Ratzinger (Bento XVI) e Jorge Mario Bergoglio (Francisco), num encontro entre os dois que ocorre meses antes da renúncia do alemão.

Uma igreja, duas doutrinas

A história começa com uma cena que demarca a sólida fronteira entre o conservadorismo de Ratzinger (Anthony Hopkins) e o progressismo de Bergoglio (Jonathan Pryce), puxando por um tema que nada tem a ver com doutrina. O alemão está lavando as mãos antes de entrarem para o conclave pós-morte de João Paulo II, quando chega o argentino assoviando “Dancing queen” da banda sueca Abba. Ratzinger olha estarrecido, quando vê que se trata de um companheiro de colégio cardinalício, ao que Bergoglio responde naturalmente, explicando que é Abba. O conclave segue, Ratzinger é eleito pela ala conservadora e Bergoglio, representante da ala progressista, fica em segundo. O tempo passa e a Igreja se aprofunda na crise que já existia ao fim do mandato de João Paulo II. Neste contexto, o alemão já tem a renúncia em mente e sabe que, num novo conclave, o argentino é favorito. Ele, por sua vez, não sabe que é um provável papa e pretende renunciar ao cargo de bispo, cansado da Igreja. Por isso, o pontífice em exercício chama-o ao vaticano para longa conversa, que dura dias.

A semana que os dois passam juntos, indo e vindo pelos lindos ambientes e paisagens do Vaticano e da residência papal de Castel Gandolfo, é dedicada a debates acalorados sobre o futuro da Igreja e a percepção das escrituras bíblicas e de sua doutrina, que replicam a tradicional ferramenta patrística de produzir teologia: a partir dos diálogos platônicos, aproximar-se da verdade intangível com a contraposição de ideias. O que está na obra fundamental “O livre arbítrio”, de Santo Agostinho, fundadora da moral católica medieval, é a ferramenta com que os dois papas, que Bergoglio ainda não sabe que o são, vão discutir o futuro da principal instituição do cristianismo.

O momento mais interessante, deste ponto de vista, é o primeiro encontro entre os dois, nos jardins de Castel Gandolfo. Quando chegam um ao outro – Bergoglio imaginando que simplesmente vai resolver os trâmites de sua renúncia, Ratzinger ciente de que pode estar transmitindo seu legado ao próximo papa – o debate acalorado entre dois bispos que pouquíssimo têm em comum, em nível pessoal e de doutrina, torna-se tenso à medida que vai se aprofundando. Ratzinger quer uma Igreja coesa em suas tradições, Bergoglio quer uma Igreja moldada nas necessidades sociais e de inclusão. Um repudia a forma de ver o mundo do outro, e começam a subir o tom quando falam sobre os temas que acossam o catolicismo nos últimos dez anos: casamento gay, ordenação de mulheres, celibato e, pior, corrupção e pedofilia.

Os dois estão em desarmonia. O alemão não compreende como centrais os problemas sociais, porque entende que o caminho é a salvação e a manutenção do que definiu a Igreja nos últimos dois mil anos. O argentino não se importa realmente com a doutrina, compreendendo que o importante é atender às necessidades prementes da população, o que inclui reformas que rompem com a tradição católica.

O equilíbrio entre os dois vai acontecer sob o intermédio das cenas cotidianas. O jogo de futebol, as voltas pelo Vaticano, conversas sobre música e piano. Ratzinger, um erudito. Bergoglio, um popular. Até que ocorre o assunto mais importante do encontro, na esteira da tentativa várias vezes recusada de Bergoglio ter assinada sua carta de renúncia: num encontro na Capela Sistina, o Papa Bento XVI anuncia sua decisão pela renúncia e seu apoio à eleição de Jorge Mario Bergoglio para sucedê-lo no Trono de São Pedro.

Os dois mudam o lugar na relação, quando o arcebispo de Buenos Aires recebe a notícia. Ele se torna o conservador, afirmando que o lugar do papa é mantido até sua morte. Raztinger, o progressista, afirmando que essa posição já não faz sentido, num mundo em que se pode reconhecer erros e mudar, antes que seja pior. E o ato de coragem do papa Bento XVI, na interpretação ficcional do roteiro de Anthony McCarten, torna-se claro quando ele explica que o mundo pede que um novo papa dê sentido ao seu pontificado, ao fazer diferente e deixar claro o que houve de bom e de mau em ambos, falhos que são em seus aspectos pessoais, embora infalíveis doutrinariamente, conforme a tradição do catolicismo.

Bento XVI, o tempo todo, quis garantir a harmonia entre os dois, a fim de que a infalibilidade papal conduza o futuro Francisco a uma continuidade na essência de suas ideias: a manutenção de uma igreja que não tenha medo da redução de seu rebanho, frente aos agnósticos e protestantes neopentecostais, mas que se esforce por ser uma comunidade coesa e defensora de seus valores. Porém, se a ferramenta de Bento XVI, de uma comunidade conservadora e orante, deve dar lugar à de um líder dedicado às causas populares, que assim seja, desde que não sejam esquecidos os princípios dogmáticos, os quais Bergoglio insiste em descartar em função dos novos tempos. O argentino, por fim, entende por que Ratzinger não aceita sua renúncia: neste tempo todo, está sendo preparado para suceder o papa.

Isso dá início ao terceiro momento da obra, em que ambos confessam para o outro os seus pecados mais graves, na forma como conduziram a Igreja. O futuro Francisco, um homem que se resignou ante os horrores da ditadura argentina, em proteção à instituição da Ordem dos Jesuítas, à qual pertence, e, pior, em proteção a si mesmo. Ratzinger, de quem o filme indica pecados ainda mais graves, confessa em palavras que o público não acessa, ao contrário dos longos flashbacks da confissão de Bergoglio. O jogo de cenas possivelmente se dá por um motivo prático, muito mais que estético: o roteiro não tem autorização para cogitar sobre acobertamento a criminosos sexuais, além de adesão ao nazismo durante a juventude de Ratzinger. Já os dados sobre Bergoglio são públicos, jamais negados pelo então arcebispo de Buenos Aires.

Existe o bom e o mau papa?

O filme, depois disso, conduz a cenas finais divertidas, como os dois comendo pizza de mão, em pé, num átrio qualquer do Vaticano, ou do argentino tentando ensinar tango para o alemão, ou, ainda, os dois juntos assistindo à final da Copa do Mundo de 2014, esta já com Bergóglio como papa Francisco.

Se comparado ao badalado “Conclave” (2025), com Ralph Fiennes, “Dois papas” é um filme mais refinado, que não se preocupa em retirar esqueletos do armário da Igreja, para além dos que estão compreendidos nos diálogos entre os dois bispos. O conspiracionismo e o sensacionalismo da obra recente, além de seu desfecho temperado pelo debate identitário, dão lugar em “Dois papas” ao fundamento da doutrina católica. Debate o tema com alívios cômicos bem situados, para não cansar o expectador numa dialética interminável e, também, oferecer o clima narrativo para a compreensão do drama e dos ideais dos dois pontífices, não tratando de forma maniqueísta o impopular Ratzinger, tampouco idealizando Francisco.

O filme termina por ser mais um filme sobre Bento XVI que sobre Francisco. Um filme que não se apega à “grandeza” de sua renúncia, mas à firmeza de suas convicções e à institucionalidade de seu pensamento, que talvez não angariem tanta simpatia porque esta dada instituição, em tempos materialistas e relativistas, não atraia simpatia ela própria. Tanto que Francisco, mesmo arrefecendo os escândalos sexuais e antipatias de ordem moral, não conseguiu conter os revezes sofridos pelos católicos ante os protestantes neopentecostais na América Latina e os ateus e agnósticos na Europa, ao passo que a Igreja vem experimentando forte ascensão nos Estados Unidos, o que começou sob o pontificado de Bento XVI. Uma inimaginável complementaridade, percebida hoje, que demonstra certa continuidade de projeto, entre os dois.

Num catolicismo em impasse, dois papas solidamente diferentes conduziram a Igreja à sua sobrevivência, demonstrando, cada um à sua maneira, a sinergia entre os herdeiros de Pedro que exemplifica o dogma da infalibilidade papal.



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