Cornwell, As Crônicas de Artur e a pesquisa explicando o mito

Quem foi o Rei Artur? Essa questão permeia o imaginário de todos que estudam a transição da Antiguidade Clássica para a Idade Média, pois, se é que ele tenha existido, há de ter sido aí. Porém, o mito fundador da Grã-Bretanha pode sequer ter sido um líder real. Neste caso, fora criado por um escritor chamado Thomas Malory, quando estava na prisão, já no século XV. Natural, pois, em sendo o analfabetismo a realidade do norte da Europa no século V, não havendo quem registrasse em crônicas a sua vida, como a história do Artur real teria nos chegado.

Fato é que, como mito, a história arturiana se consolida mundialmente com “A espada na pedra”, por Therence Hanbury White, que foi adaptado para o filme da Disney de mesmo nome, aqui no Brasil publicado como “A espada era a lei”, e que inspira personagens clássicos como Gandalf (“O Senhor dos Anéis”) e Dumbledore (“Harry Potter”), ambos baseados em seu Merlin. Quando White escreve sua obra, já o faz sob influência de outros autores como Walter Scott, que escreve “Ivanhoé” no século XIX.

Assim seria Camelot

Em “As crônicas de Artur”, o escritor britânico Bernard Cornwell tenta dar contornos científicos ao mito arturiano, buscando o Artur real que preserve e explique os elementos lendários, que estão no imaginário europeu desde a Idade Média. Se Artur é considerado um tipo de fundador da Grã-Bretanha, qual seria a sua origem? Cornwell tem uma resposta: tratava-se de um soldado de origem bretã que servia ao Império Romano, já quando Roma não ocupava as ilhas nortistas. Ele é enviado por Roma para pacificar a Ilha, quando esta pensa em retornar quando foram resolvidos seus problemas internos. Portanto, ele não era propriamente de um rei, mas um homem que ganhou ascendência sobre as lideranças locais porque retornou da região mais rica e desenvolvida, a fim de proteger os moradores da Grã-Bretanha, àquela altura célticos bretões, dos ataques saxônicos. Roma pensava que os bretões eram cidadãos mais dóceis que os bárbaros nortistas.

Durante as guerras contra os saxões, para unir esses líderes de clãs bretões que eles próprios denominavam reis, Artur não tinha alternativa que não estabelecer uma não-hierarquia: um por um, reuniam-se ao seu redor, numa mesa ou espaço circular, a fim de que nenhum ocupasse espaço de privilégio em relação ao outro. Assim eram definidas as estratégias de guerra e, disso, surgiu o mito de Artur e os Cavaleiros da Távola Redonda, que, no Artur real, não seria mais que um soldado romano liderando chefes de clãs em assembleias não hierarquizadas, sendo a circularidade da mesa de guerra a síntese disso.

Merlin era um chefe druida, ou seja, estava a princípio desvinculado da autoridade dos reis bretões, vivendo na floresta ou circulando como sábio e, muitas vezes, como bruxo, em meio aos castelos e fortes onde estavam os reis. Na Grã-Bretanha não cristianizada, o bruxo era figura de autoridade, e assim funcionava como um mentor do meio-romano Artur e de todos os líderes bretões. Lancelot, um vaidoso guerreiro da também romanizada região de Armórica – que viria a ser o nordeste da França – era semelhante a Artur em vários aspectos e, por isso, viria a atrair as atenções da mesma celta que Artur toma como esposa: Gwynevere.

Curiosos, na obra, são os costumes de cada bretão. Num período em que o Império Romano tinha espalhado suas crenças pelo mundo, e a partir daí todas as suas tradições, de diferentes províncias, tinham se movido pelas estradas romanas, o que havia na distante ex-província não era diferente do que estava em toda a Europa. Cristãos, mitraístas, pagãos romanos, pagãos celtas, cultos egípcios, tudo estava naquela região. Artur circula bem entre todos os credos, mas é retratado como um cético, em razão da queda do Império. Galahad é cristão. Gwynevere cultua Ísis, a deusa egípcia. A maioria dos guerreiros é mitraísta. Merlin e suas bruxas se ressentem da queda dos deuses bretões, inclusive a discípula que ocupa o lugar de Morgana na narrativa, Nimueh, que estará por trás de um desfecho trágico para a história.

E quem narra a história? Esta é a parte mais interessante. Como, nesta obra, Lancelot é um guerreiro vaidoso e sem caráter, estando aí a gênese da traição de Gwynevere, o lugar de narrador cabe ao melhor amigo de Artur em sua jornada: Derfel Cadarn, que quando narra é um monge idoso num monastério cristão, já que, décadas após Artur, a Grã-Bretanha já está cristianizada e tomada por saxões, tornando-se a Inglaterra. Derfel não tem uma das mãos, o que é um fio condutor importante da narrativa, já que em diversos momentos instiga-se a curiosidade do leitor para saber como ele perdeu a mão.

O Artur cristianizado

Camelot, por fim, jamais foi o reino de Artur. Camelot foi um estado de graça, o qual eles viveram quando os saxões, em algum momento, estavam distantes e derrotados pelas estratégias romanas agregadas por Artur às batalhas bretãs, e por isso se estabeleceu um período de retomada da paz para os bretões, antes ameaçados pelos romanos e, depois, pelos germânicos do norte. Os cristãos, mais tarde, teriam empregado lógicas feudais medievais à história arturiana, como ele ser rei e os demais, cavaleiros, ou Camelot ter sido seu reino, ou ainda a espada tirada da pedra por um menino de coração puro e alma predestinada.

“As crônicas de Artur”, de Bernard Cornwell, foram publicadas em três volumes, sendo o primeiro “O rei do inverno”, o segundo, “O inimigo do mundo”, e o terceiro chamado “Excalibur”. No Brasil, estão publicados pela editora Record, com tradução de Alves Calado. De leitura extensa, porém leve, é indicada para o público adolescente e jovem adulto, podendo, claro, ser consumida por pessoas de outras idades, ressalvados o tamanho da obra e a linguagem predominantemente infantojuvenil, rápida, medianamente descritiva quanto a pessoas e ambientes, mas detalhada em comportamentos e costumes, e rica e primorosa em demoradas cenas de batalha.



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