
Breath of Fire e o clássico a partir do simples
Referência na primeira era do gênero RPG para videogames, Breath of Fire fez da receita simples um dos mais importantes jogos da era 16-bits, lançado pela Capcom em 1993 para Super Nintendo, com edição norte-americana chancelada pela Squaresoft, atual Square Enix. Ainda quando os RPGs para consoles se consolidavam, com as quintas edições de Dragon Quest e Final Fantasy lançadas no ano anterior, o jogo do garoto que se transforma em dragão foi um dos que mais fez avançar o gênero, abrindo o caminho para clássicos como Final Fantasy VI e Chrono Trigger.
Jornada do herói
A história é simples, contando a jornada de um garoto órfão que parte para resgatar a irmã raptada por um grupo de homens maus. Isso amplia seus méritos, em vez de reduzir, porque, num período em que os games ainda eram destinados ao público infantil, era arriscado apostar em intricadas histórias, sacrificando a jogabilidade dos beat’em up e jogos plataforma como Double Dragon, Streets of Rage, Shinobi e os clássicos Mario e Sonic. Simplificando a narrativa, pôde apostar no diferencial dos gráficos e organicidade do mundo aberto.
Ryu, o protagonista (nome passível de modificação pelo jogador, na partida do jogo), começa em sua casa incendiada e busca escapar, tendo perdido contato com a irmã, que surge quando o jogador deixa a casa e, nas ruas da cidade, vê um embate entre ela, que é uma maga, e um homem identificado como Cavaleiro da Ordem dos Dragões Negros. Embora dê muito trabalho ao antagonista, ela é derrotada e levada pelo inimigo, deixando para a personagem principal a missão de resgatá-la, sobretudo quando um ancião da vila diz que ele é o único capaz de fazê-lo.
Começa aí uma jornada por um continente com cinco grandes regiões, mais um reino submarino, em que Ryu se une a vários heróis que encontra pelo caminho. Nina, uma garota com asas; Bo, um homem-lobo arqueiro perito em florestas; Karn, um ladrão perito em abrir fechaduras; Gobi, um homem-peixe do reino submarino; Ox, um minotauro ferreiro; Bleu, uma mulher-cobra feiticeira; e Mogu, um homem-toupeira. Angariando os companheiros, Ryu também passa por sua autodescoberta, conquistando o poder de se transformar em dragões, pois é um herdeiro da Ordem dos Dragões de Luz.
Derrotando vários dos Dragões Negros pelo caminho, e também passando por monstros que guardam cavernas, montanhas, desertos e outros dos muitos cenários que o grupo de aventureiros atravessa, Ryu vai conquistando formas cada vez mais poderosas de almas de dragões, que o permitem fazer as transformações. Em momentos finais da narrativa, o jogador imerge em cenários mais e mais fantasiosos, como uma torre em que o chão consiste em pontes sobre o vazio do universo, que giram todas as vezes em que se encontram com outras pontes, de modo a confundir quem joga. No auge da história, enfrenta-se outros dragões, que são formas transformadas dos próprios cavaleiros inimigos.
Batalhas por turno
A jogabilidade é, sobretudo hoje, o ponto fraco do jogo. Os RPGs chamados “turn-based”, em que as batalhas se dão pela seleção de ações – geralmente, ataque, magia, uso de itens e fuga – pode ser considerada modorrenta e retida a jogos retrô, na atualidade. A isso some-se o irritante modelo de batalhas aleatórias, em que elas surgem repentinamente enquanto o jogador está percorrendo o campo aberto ou os cenários internos, exceto cidades ou um ou outro cenário excepcional em que não haja monstros ou guerreiros ordinários pelo caminho.
Para vencê-los, é necessário que, a cada ataque físico ou magia, reduza-se a barra de vida dos inimigos. Em Breath of Fire, quando ela chega a zero, ainda é necessário golpear o inimigo por um número incerto de vezes até matá-lo. Essa é uma característica única: a incerteza do momento da vitória. Alguns adversários chegam a exigir mais tempo de luta na fase incógnita que na barra mensurada. Isso torna alguns enfrentamentos especialmente difíceis, pois, sem saber quando eles terminam, fica difícil traçar uma estratégia para vencer, até que se entenda cada dinâmica depois de perder várias vezes. De qualquer forma, o alento é que, sem o tradicional “game over”, o jogo sempre te devolve ao último santuário para salvamento do jogo e cura das personagens.
O progresso não é perdido, embora seja muito difícil usar isso para acumular níveis para novas tentativas, pois a experiência dada pelos monstros derrotados a cada luta, usada para elevar níveis que sobem os atributos das personagens, defasa muito rapidamente. Como ponto realmente negativo fica, por sinal, o progresso das personagens. Tanto pela lentidão da conquista de níveis após certo tempo num mesmo cenário, quanto pela discrepância da curva de poder de Ryu e Nina para os demais. Ao fim, o jogador está dependendo do protagonista e de sua principal companheira, respectivamente para ataque e cura, enquanto tenta manter os outros heróis vivos para, conforme a ação do inimigo em cada turno, apanharem no lugar do líder.
Personagens se tornaram repetitivos
Mais eficaz em contar uma boa história que os Final Fantasy anteriores, principalmente o rebuscado e erudito volume IV, dos complexos heróis Cecil e Kain, Breath of Fire conquistou principalmente o ocidente. Dragon Quest, seu outro rival, sempre foi restrito ao mercado japonês, embora lá tenha sido imenso sucesso. A franquia, que renovou o RPG turn-based no início dos anos 1990, ainda demonstrou força com Breath of Fire II, em 1996, mas definhou na era 3D, sendo de longe superada por Final Fantasy. Franquia esta que arrebatou o mercado de RPGs quando lançou seu lendário volume VII, de Cloud, Sephiroth, Tifa e cia, e embarcou por sua fase áurea com VIII, IX e X. Também acertou em renovar completamente as histórias a cada volume, enquanto a série da Capcom repetia a cada edição os mesmos Ryu e Nina e a mesma transmutação em dragões, com heróis auxiliares que, embora não fossem os mesmos, repetiam os mesmos arquétipos do animal antropomorfo, do ladrão etc.
A série dos meninos que viravam dragão avançou razoavelmente até o volume IV, apostando equivocadamente em gráficos poligonais para personagens e cenários, com rotatividade de câmera, num início do 3D que não permitia bons cenários com essas ferramentas. Indo noutro caminho, a Squaresoft criou para Final Fantasy um sistema sobre gráficos pré-renderizados, usando e abusando de cenários suntuosos e detalhados, no que foi acompanhada pela Capcom em Resident Evil, mas não em seu RPG. O volume V de Breath of Fire, lançado para Playstation 2, fracassou em vendas e o VI, uma tentativa de retomada retrô em 2016, foi um fiasco.
Ficou, para os amantes dos games, a memória de um jogo que tornou-se subestimado em razão de sua descontinuidade, visto que o tema do garoto que se torna dragão, ainda que repetitivo, era uma receita de boas histórias.